Mais de 100 mil tartarugas-da-Amazônia nascem em projeto de proteção, e crianças ribeirinhas ajudam na soltura de filhotes


Número bateu recorde histórico e foi mais do que o dobro do registrado no ano passado. O g1 acompanhou a soltura de mais 5 mil filhotes na região de Santa Maria do Boiaçú, interior de Roraima. Mais de 100 mil tartarugas-da-Amazônia nascem em projeto de proteção e crianças ribeirinha
Menos de 4 centímetros, mas essenciais para o equilíbrio ambiental. Mais de 100 mil tartarugas-da-Amazônia vão nascer até o fim fevereiro nas praias do Baixo Rio Branco, no Sul de Roraima. Os milhares de ovos são monitorados e protegidos pelo Projeto Quelônios da Amazônia (PQA), do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).
Após o nascimento, os filhotes são soltos no rio – e este ano, parte da soltura teve a participação inédita de crianças ribeirinhas como forma de destacar a proteção da espécie.
🚣‍♀️ O PQA foi criado há 35 anos para proteger as espécies de quelônios em risco de extinção na Amazônia brasileira. Quelônio é todo réptil de casco, o que inclui jabutis, tracajás e cágados. O maior entre os que vivem fora da água salgada é a tartaruga-da-Amazônia, que na fase adulta pode chegar a 1 metro de comprimento e pesar até 65 kg. Além disso, vivem até 100 anos.
Filhotes de tartarugas-da-Amazônia em praia no Baixo Rio Branco
Caíque Rodrigues/g1 RR
Em Roraima, o projeto monitora ninhos no Baixo Rio Branco, região onde há 16 comunidades ribeirinhas – o acesso é feito apenas por horas navegando pelo rio ou por avião. A iniciativa atua contra predadores e no combate à principal ameaça: o tráfico de tartarugas por criminosos conhecidos como “tartarugueiros”.
Na desova deste ano, o projeto catalogou 120 ninhos de tartarugas-da-Amazônia, a maioria na ilha Maú. O espaço do monitoramento é chamado de tabuleiro pelos pesquisadores.
🥚 Os ovos são colocados nos ninhos e se desenvolvem sozinhos, sem a presença das tartarugas. Cada fêmea coloca entre 90 a 150 ovos por ninho. Quando os filhotes nascem, eles vão sozinhos até a água — momento em que se tornam presas fáceis. É nesta fase que o PQA age para garantir a segurança.
Tartaruga-da-Amazônia filhote e adulta
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O g1 esteve no acampamento do PQA e acompanhou a ação que teve participação inédita de alunos da escola municipal Vovó Tetinha, em Santa Maria do Boiaçu, na região de Santa Fé, município de Rorianópolis. Para chegar ao local, foram 9 horas de barco saindo de Caracaraí descendo pelo rio Branco.
“O maior problema é o tráfico de tartarugas. Aqui, na nossa área, encontramos menos casos porque nossa presença constante inibe um pouco essa atividade. Mas fora da nossa região, o tráfico é intenso. O Rio Branco, por exemplo, tem uma grande extensão e, em certas épocas do ano, como no Natal e no Ano Novo, há um aumento significativo da captura ilegal”, explicou o coordenador do PQA em Roraima, Rui Bastos.
Crianças são apresentadas a filhotes de tartarugas-da-Amazônia no Baixo Rio Branco
Caíque Rodrigues/g1 RR
Os ovos monitorados foram colocados entre setembro e dezembro por fêmeas que escolheram a ilha Maú para o ciclo reprodutivo de 2024-2025. O número total ainda não foi fechado porque ainda estão nascendo tartaruguinhas nos tabuleiros, mas já ultrapassa os 100 mil filhotes, o que impressionou os pesquisadores.
O número de ovos é quase o dobro do registrado no ciclo 2023-2024, em que foram mais de 57 mil ovos, e ultrapassa o recorde anterior registrado em 2020-2021, de mais de 95 mil. Veja no gráfico abaixo.
Segurança da areia à agua
Para garantir segurança aos filhotes da areia até a praia, o projeto monitora o comportamento das fêmeas para localizar os ninhos, prever o tempo de eclosão e depois fazer a soltura.
A participação do grupo de 25 crianças foi na soltura de 5 mil filhotes nas águas do rio Branco. Os pequenos, com idades 7 à 11 anos, atuaram para garantir que cada tartaruguinha chegasse à agua com segurança e iniciasse o ciclo da vida que pode chegar a até 100 anos.
Tartaruga-da-Amazônia saindo do ovo em praia no Baixo Rio Branco, em Roraima
Caíque Rodrigues/g1 RR
O biólogo especialista em comportamento animal pela Universidade de Brasília (UnB), Eduardo Bessa, explica que houve um período que as tartarugas-da-Amazônia foram consideradas uma espécie em extinção, mas devido à projetos como o PQA, atualmente registram baixo risco de extinção.
“As tartarugas-da-Amazônia desempenham um papel crucial na natureza, atuando como conectores entre ambientes aquáticos e terrestres. Elas transferem nutrientes de um ambiente para outro através de seu hábito de vida, conectando os dois ambientes. Além disso, ao nadar por longas distâncias, deslocam nutrientes ao longo do rio”, explica.
Em 2024, a quantidade de ovos foi afetada pela seca histórica vivida pelo estado causando a diminuição no número de ninhos. O coordenador Rui Bastos explicou que as condições climáticas extremas também impactam na reprodução.
Rui Bastos, coordenador do PQA em Roraima
Caíque Rodrigues/g1 RR
Entre as dificuldades registradas em razão da seca estavam: a compactação excessiva das praias, dificultando a saída dos filhotes dos ninhos; casos de deformação no casco e paralisia em filhotes, possivelmente causados pelas altas temperaturas; além do baixo número de fêmeas indo às praias para colocar os ovos.
“Esses problemas climáticos são um desafio para a conservação das tartarugas, pois, ao contrário do tráfico, não há muito como a gente controlar as condições ambientais”, destacou Rui.
Tudo isso deu um gostinho de vitória que fez com que os pesquisadores compartilhassem a felicidade com a comunidade mais próxima. Os alunos da escola foram de lancha até o tabuleiro de Santa Fé, distante cerca de 1h30 de barco de Santa Maria do Boiaçu, onde conheceram o trabalho do PQA.
As 25 crianças começaram a aprender sobre os quelônios dentro da sala de aula cerca de uma semana antes da soltura. Eles ganharam cartilhas informativas sobre as espécies, participaram de aulas lúdicas e fizeram desenhos dos animais. Por fim, estiveram presentes na soltura de mais de 5 mil tartaruguinhas.
Crianças ribeirinhas participação da soltura de mais de 5 mil filhotes de tartarugas-da-Amazônia
Caíque Rodrigues/g1 RR
A felicidade e a curiosidade tomou conta do momento. Os alunos chegaram a escavar um ninho para ajudar os filhotes a sair e testemunharam o trajeto dos filhotes até a água.
“Dava pra sentir eles se mexendo dentro do ninho! Você não vê ela, ela fica lá cavando. Consegui ajudar uma a sair da terra. Foi legal demais”, disse o pequeno Nikolas de Oliveira, de 9 anos.
Nikolas de Oliveira, de 9 anos, é uma das crianças que participou da soltura dos quelônios no Baixo Rio Branco
Caíque Rodrigues/g1 RR
A pequena Evelyn de Santos, de 9 anos, não conseguia tirar os olhos – e as mãos – dos pequenos répteis. Antes ela até tinha visto a espécie, mas apenas as tartarugas adultas.
“Eu achei fofo! Vou ajudar a soltar elas. Eu já tinha visto antes as grandes no rio, mas pequenininha é muito fofinho”, disse.
Evelyn de Santos, de 9 anos, achou “fofo” os filhotes de tartaruga-da-Amazônia
Caíque Rodrigues/g1 RR
Júlio Cordeiro, de 50 anos, é professor de língua portuguesa da escola Vovó Tetinha, na comunidade. Ele foi um dos responsáveis por ministrar as aulas e participar da ação. Ele apoia momentos como esses pois ajudam a sair da rotina e, principalmente, garantir o contato das crianças com a natureza.
“Eles se mostraram bastante interessados. Foi feito um trabalho muito legal, que foi através de desenho e gravura. Cada aluno fez a exposição da sua ideia, da sua criatividade. As crianças estão super felizes com tudo isso, e eu também”, contou.
A emoção também foi compartilhada pelos pesquisadores do PQA. Rui classificou o momento como o ápice de um trabalho feito com dedicação por membros do projeto.
Esse é um momento muito especial para mim, para o projeto e, principalmente, para as crianças da comunidade. Elas convivem com o rio o tempo todo, mas nunca viram de perto a soltura de milhares de filhotes. Esse contato é uma experiência única e ajuda a fortalecer a conscientização ambiental na região.
Superintendente do Ibama em Roraima, Diego Bueno, no Programa Quelônios da Amazônia (PQA)
Caíque Rodrigues/g1 RR
O superintendente do Ibama em Roraima, Diego Bueno, participou da ação e enfatizou a importância do PQA na conservação das tartarugas-da-Amazônia e na educação ambiental para a proteção da espécie na região do Baixo Rio Branco.
“É uma experiência emocionante e gratificante. Ver a empolgação das crianças ao acompanhar a soltura dos filhotes é muito especial. Essas atividades ajudam a conscientizar as novas gerações sobre a importância de preservar a fauna amazônica e garantir a sobrevivência dessas espécies”.
🐢 Maior quelônio da Amazônia
Filhotes de tartarugas-da-Amazônia antes da soltura no Rio Branco, em Roraima
Caíque Rodrigues/g1 RR
Entre os quelônios protegidos pelo programa, as tartarugas-da-Amazônia são as maiores. De acordo com o pesquisador Eduardo Bessa, as tartarugas são principalmente herbívoras. Elas se alimentam de plantas aquáticas e frutos, e são importantes para a propagação de sementes.
“Na idade reprodutiva, durante a seca, machos e fêmeas acasalam no rio, e a fêmea sobe à praia à noite para desovar, às vezes em grupos enormes chamados arribada”, explicou.
As estratégias reprodutivas desses animais são, no mínimo, curiosas. O professor explica que, em ecologia, há duas estratégias de ciclo de vida, chamadas de: R e K. Nos ciclos em K, as fêmeas têm poucos filhotes, cuidam muito bem deles e fazem de tudo para que a maioria sobreviva, como uma onça pintada, por exemplo. Já os em R têm muitos filhotes que morrem aos montes até crescerem – o caso das tartarugas.
“As estratégias de ciclo de vida R e K são modelos que descrevem como as diferentes espécies se adaptam a seus ambientes e como maximizam seu sucesso reprodutivo”.
“Sua estratégia consiste em produzir o máximo de descendentes possível, com a expectativa de que alguns sobrevivam, sendo a sobrevivência dos descendentes mais dependente de fatores ambientais do que do cuidado parental”, explicou o professor.
Filhotes de tartaruga-da-Amazônia são conservados em projeto do Ibama para preservação em Roraima
Caíque Rodrigues/g1 RR
O PQA monitora o ciclo de reprodução a partir do momento em que as fêmeas colocam os ovos nos ninhos da praia.
“Isso evita a predação por animais terrestres e aves. Os urubus comem muitos filhotes, animais terrestres também comem e, dentro da água, os peixes maiores são os principais predadores. A nossa ideia é aumentar taxa de sobrevivência desses filhotes até que cheguem à fase adulta”, explica Rui.
Para se protegerem, os filhotes passam os primeiros anos em pequenos grupos. Eles chegam à fase adulta após 30 anos. A expectativa de vida na natureza é de 100 anos.
De acordo com o professor Eduardo Bessa, as tartarugas têm os cromossomos sexuais definidos pela temperatura da areia em que os ninhos foram construídos. Por isso, as mudanças climáticas afetam a reprodução desses animais.
“O desmatamento priva as tartarugas de parte da dieta delas, que vem das árvores das margens. Já a mudança climática tem um efeito mais dramático. Não só esses animais dependem de um regime de cheias e secas apertado pelas mudanças climáticas para seu ciclo de vida como o gênero deles são afetados”.
PQA ajudando filhotes de tartarugas-da-Amazônia a sairem do ninho em praia no Baixo Rio Branco
Caíque Rodrigues/g1 RR
Traficar ou interferir nesse processo é crime previsto na Lei de Crimes Ambientais nº 9.605 de 1998. A delegada da Delegacia de Proteção ao Meio Ambiente da Polícia Civil, Maryssa Batista, explica que a atividade de tartarugueiros configura infração penal conforme a legislação de crimes ambientais, especificamente crimes contra a fauna.
“Sempre que houver identificação dos responsáveis, instauramos um procedimento investigativo para garantir a devida responsabilização, culminando na aplicação das punições previstas em lei. Pode resultar em pena de seis meses a um ano de detenção e multa”, alertou.
⛺ Projeto Quelônios da Amazônia
Tartarugas-da-Amazônia são protegidas por programa de conservação do Ibama em Roraima
Caíque Rodrigues/g1 RR
O PQA tem uma história multifacetada com um foco central na conservação das tartarugas amazônicas. O projeto foi criado para proteger os ninhos e filhotes, garantindo a segurança durante a fase inicial de vida e salvou cerca de 100 milhões de filhotes no Brasil.
O projeto é uma iniciativa do Ibama, mas tem parceria da Fundação Estadual do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Femarh), especialmente na região do Baixo Rio Branco, dentro das unidades de conservação estadual. Um dos resultados mais significativos do PQA é que a tartaruga-da-Amazônia está saindo da lista de animais ameaçados de extinção.
A região onde o PQA atua é considerada uma área protegida, com proibição da pesca, principamente com redes do tipo malhador, durante o período reprodutivo.
Em Roraima, as equipes em campo são compostas por servidores do Ibama, pilotos de barcos, policiais para a segurança dos servidores e colaboradores locais.
Crianças participam de ação de soltura de quelônios no Baixo Rio Branco, em Roraima
Caíque Rodrigues/g1 RR
“Atualmente, temos duas equipes em campo, cada uma composta por nove pessoas. Temos várias praias monitoradas. Esta aqui é a praia de Santa Fé, mas a maior concentração de ninhos deste ano ocorreu na praia do Maú. Outras praias importantes para o projeto incluem Mata-Matá, Araçá e Jacaratinga”, disse o técnico administrativo do Ibama e coordenador de campo do PQA, Licinio Cavalcante.
O projeto tem com o apoio da Companhia Independente de Policiamento Ambiental (Cipa), que monitora atividades ilegais e medeia conflitos com pescadores e ribeirinhos. A Delegacia de Proteção ao Meio Ambiente também oferece apoio, combatendo crimes ambientais.
Programa ajuda a salvar tartarugas ameaçadas por caça ilegal no sul de Roraima
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