As árvores marcadas para morrer — e matar — em SP


Em uma única tempestade em meados de março, 330 árvores da cidade foram derrubadas pela chuva e vento fortes, e uma pessoa morreu. Para botânico da USP, erros da Prefeitura, da Enel e dos moradores estão por trás do problema. Árvore de grande porte inclinada na direção da via em São Paulo.
BBC
Quem anda com o botânico Gregório Ceccantini pelo bairro de Pinheiros, na Zona Oeste de São Paulo, logo se acostuma a vê-lo apontar árvores que estão com a “morte anunciada”.
“A madeira desta aqui já está podre”, ele cutuca com um formão o tronco de uma velha sibipiruna. A poucos metros dali, uma figueira pende perigosamente sobre o asfalto.
“Esta jamais deveria ter sido plantada aqui e precisa ser removida com urgência”, afirma Ceccantini.
Em poucos quarteirões, o diagnóstico de risco de morte iminente — da árvore e, não raro, também de algum pedestre ou motorista — se repete várias vezes.
Morador de Pinheiros e professor de botânica na Universidade de São Paulo (USP), com pós-doutorado na Universidade Harvard (EUA), Ceccantini conhece bem as árvores do bairro, mas diz que os problemas de arborização ali se repetem em boa parte de São Paulo — assim como em muitas outras cidades brasileiras.
A BBC News Brasil acompanhou Ceccantini em uma caminhada pela região algumas semanas após uma tempestade provocar a queda de 330 árvores na cidade. Em vários locais, ainda havia galhos nas calçadas, e fios rompidos continuavam presos aos postes.
Naquele temporal, em 12 de março, São Paulo perdeu o equivalente a um décimo de todas as árvores plantadas no município em um mês inteiro.
Gregório Ceccantini mostra sibipiruna com parte do tronco apodrecido.
Arquivo Pessoal
A Defesa Civil afirmou que, naquele dia, os ventos podem ter chegado a 100 km/h, uma intensidade raramente registrada na cidade.
Na Sé, no Centro de São Paulo, a queda de uma árvore matou o taxista Elton Ferreira de Oliveira, de 43 anos. O carro dele transportava duas passageiras, que sobreviveram.
Cerca de 500 mil moradores ficaram sem luz, e, em muitas casas, o serviço só foi restabelecido dias depois. Outras tempestades nos últimos meses também provocaram quedas de árvores e apagões em diferentes partes da cidade.
Meteorologistas afirmam que a força dos últimos temporais é provavelmente uma consequência das mudanças climáticas — e que a tendência é que eventos climáticos extremos se tornem cada vez mais frequentes.
Ainda assim, Ceccantini diz que os transtornos poderiam ser reduzidos se houvesse mais atenção às árvores da cidade.
Para o botânico, uma série de erros cometidos pelo poder público, pela concessionária de energia e até mesmo por moradores favorece as quedas de árvores.
‘Ficus benjamina’ é uma espécie que apodrece com facilidade e é inadequada para cidades, segundo botânicos
Arquivo Pessoal
Podas mal feitas
As podas são essenciais na arborização urbana: elas ajudam a moldar a copa das árvores, reduzir assimetrias e evitar quedas. No entanto, Ceccantini diz que, quando mal feitas, podem acelerar a morte das árvores.
Isso pode ocorrer quando, por exemplo, um galho é serrado sem que o corte fique rente à sua base, ou quando o corte permite a infiltração da água da chuva.
Segundo o botânico, uma poda ruim pode não cicatrizar, sujeitando as árvores a infecções que podem fazer a madeira apodrecer.
Podas de galhos muito grossos também podem ser mais difíceis de cicatrizar. Por isso, o ideal é que sejam cortados antes de engrossarem.
Na caminhada por Pinheiros, Ceccantini apontou vários exemplos de podas feitas pela Prefeitura que, segundo ele, tornaram as árvores mais propensas a quedas e doenças.
Também mostrou árvores com a saúde comprometida por não terem sido podadas e manejadas a tempo — caso de uma sibipiruna na rua Artur de Azevedo, que corta o bairro de ponta a ponta.
Essa sibipiruna está sendo estrangulada por uma figueira mata-pau, planta que cresce sobre a hospedeira e suga seus nutrientes, podendo levá-la à morte.
“Ela [figueira mata-pau] tinha que ter sido removida quando jovem, agora já ficou grande demais”, afirma o botânico.
As podas e avaliações podem ser pedidas por moradores, pelo telefone 156 ou pela internet, e são feitas sob supervisão de um engenheiro agrônomo da Prefeitura.
Todas as podas em áreas públicas do município precisam ser aprovadas pela Prefeitura e só podem ser feitas pelo poder público.
Exemplo de árvore com a copa desequilibrada por conta de poda que buscou unicamente proteger a fiação, segundo o botânico Gregório Ceccantini
Arquivo Pessoal
Há críticas, porém, à qualidade e ao tempo de espera pelo serviço. Segundo a Prefeitura, no fim de 2024, havia 20.315 pedidos de poda em aberto.
A Prefeitura diz ter contratado 155 engenheiros agrônomos desde 2021 para reduzir a fila de podas, mas atribui parte da lentidão à concessionária de energia Enel.
Isso porque, em São Paulo, as podas em árvores próximas à rede elétrica são feitas pela concessionária, ainda que também precisem da aprovação da Prefeitura.
Já a Enel diz ter dobrado o número de podas em 2024 em comparação com 2023.
Para Ceccantini, “podas feitas unicamente para proteger a fiação” também podem ampliar o risco de queda.
Ele cita como exemplo uma mirindiba também na rua Artur de Azevedo. Segundo o professor, podas feitas pela Enel causaram “uma ramificação bastante assimétrica, deixando a árvore totalmente voltada para a via, desequilibrada”.
Parte da árvore tombou numa tempestade recente, e segundo Ceccantini, “é só questão de mais uma tempestade para o resto dela cair”.
A Enel afirmou, no entanto, que seus técnicos são treinados em “arborização urbana e manejo florestal” e que suas podas seguem a legislação municipal.
‘Ficus benjamina’ destrói calçadas e é uma das campeãs em quedas, mas segue sendo plantada por moradores
Arquivo Pessoal
Espécies inadequadas
Muitas espécies comuns na arborização de São Paulo jamais deveriam ser plantadas em cidades, diz o botânico.
Uma delas é o Ficus benjamina, uma figueira originária da Ásia bastante popular na decoração de interiores.
A árvore, segundo Ceccantini, tem “uma madeira de densidade baixa que apodrece facilmente e raízes muito grandes, que levantam casas e destroem as instalações urbanas”.
“É uma árvore que só causa problemas”, afirma o botânico.
A Prefeitura de São Paulo tem um Manual Técnico de Arborização Urbana, onde cita espécies indicadas para o plantio na cidade. A Ficus benjamina não está na lista.
Mesmo assim, Ceccantini afirma que moradores seguem espalhando a árvore pela cidade.
“As pessoas têm essa árvore em casa, a árvore vai ficando grande, elas acham que estão fazendo uma boa ação em libertar a árvore, e então as plantam em qualquer lugar”, diz o botânico.
Outras espécies contra-indicadas para o plantio em calçadas, mas comuns em São Paulo, são a falsa-seringueira (Ficus elastica), o alfeneiro (Ligustrum lucidum) e o eucalipto (Eucalyptus sp).
Questionada sobre a presença de árvores inadequadas na cidade, a Prefeitura disse ter feito um levantamento sobre espécies nativas do município e espécies exóticas invasoras.
Mas não respondeu se tem planos para substituir espécies mais propensas a quedas por outras mais resistentes.
Ferimento causado por impacto de caminhão em árvore próxima ao meio fio.
Arquivo Pessoal
Choques com caminhões e canteiros impróprios
Árvores que se inclinam na direção do asfalto estão sujeitas a batidas de veículos, especialmente caminhões.
Essas colisões, segundo Ceccantini, geram ferimentos que podem ser a porta de entrada para infecções e o apodrecimento da madeira.
O botânico explica que árvores se inclinam na direção do asfalto em busca de luz e para fugir da sombra de edifícios.
Mas ele afirma que é possível corrigir esse deslocamento com “podas de condução”, cortando os galhos inclinados para a via.
Também se deve evitar plantar árvores muito perto do meio fio. Canteiros inadequados são outro fator capaz de acelerar a queda de árvores, diz Ceccantini.
Canteiros elevados, por exemplo, estimulam a árvore a formar raízes superficiais, dificultando o ancoramento da planta ao solo.
Essas árvores estão mais sujeitas a serem arrancadas do chão pela raiz durante uma ventania, afirma o botânico.
Outro problema são canteiros muito pequenos, canteiros sobre lajes ou canteiros nos quais a árvore é cimentada.
Nesses casos, a árvore pode ter dificuldade para acessar a água, ficando mais sujeita ao ressecamento e outras doenças.
Na cidade de São Paulo, calçadas e canteiros são responsabilidade dos donos dos imóveis onde se localizam e devem seguir normas definidas pelo município.
Já a Prefeitura tem a atribuição de fiscalizar as calçadas e multar imóveis que descumpram as regras.
No entanto, segundo Ceccantini, raramente a fiscalização leva em conta os padrões dos canteiros.
Questionada pela BBC News Brasil sobre o que tem feito para corrigir canteiros e substituir árvores em locais impróprios, a Prefeitura não respondeu.
Árvore ‘cimentada’ e em canteiro elevado: dois erros que podem acelerar sua queda.
Arquivo Pessoal
O que dizem a Prefeitura e a Enel?
A Prefeitura de São Paulo disse que a cidade conta com um Plano Municipal de Arborização Urbana vigente até 2040 e que busca aumentar a resiliência das árvores frente às mudanças climáticas.
A Prefeitura afirmou ainda contar com 129 equipes para podas de árvores — cada uma com cerca de 10 membros e supervisionada por um engenheiro agrônomo.
“O número de engenheiros agrônomos cresceu na cidade na atual gestão de 239 em 2021 para 394 atualmente”, diz a Prefeitura.
Entre janeiro e fevereiro de 2025, a Prefeitura diz ter feito 23.590 podas e removido 2.835 árvores.
A Enel, por sua vez, afirma que suas podas seguem as diretrizes da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). A companhia afirma ainda trabalhar em parceria com a Prefeitura de São Paulo e conforme a legislação municipal.
“A empresa faz a chamada ‘poda de adequação’, que consiste em afastar os galhos menores de árvore da rede elétrica, sem comprometer a saúde da árvore”, diz a Enel.
A companhia afirma que seu objetivo é “reduzir o impacto no fornecimento de energia à população”.
A Enel diz ter feito “638 mil podas preventivas em toda a área de concessão (sendo 217 mil na capital), praticamente o dobro do realizado em 2023”.
Em 2025, até fevereiro, houve 104,7 mil podas, segundo a empresa.
Pau-ferro no largo do Arouche, no centro; árvores de grande porte ajudam a reduzir temperatura, diz botânica.
Arquivo Pessoal
Mudanças climáticas tornam inviáveis árvores altas em São Paulo?
Com a perspectiva de que São Paulo seja atingida por temporais cada vez mais intensos, a presença de árvores altas na cidade não se tornou arriscada demais?
Para Ceccantini, não. Ele afirma que muitos só se lembram das árvores quando elas causam transtornos, mas se esquecem dos benefícios que elas trazem quando estão sãs: sombra, bem-estar, beleza, valorização de imóveis e filtragem da poluição.
Para Aline Cavalari, professora de Fisiologia Vegetal da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), “a árvore grande não pode ser tratada como a vilã da história”.
Cavalari coordena um curso sobre arborização urbana oferecido para órgãos públicos e empresas que atuam no setor.
Segundo ela, “as árvores têm um papel ecossistêmico e, quanto maiores, maior será esse papel”.
Para Cavalari, aliás, o aquecimento global torna as árvores grandes ainda mais necessárias nas cidades, já que são capazes de resfriar o ar e suas copas amortecem o impacto das chuvas.
Ela afirma, no entanto, que as mudanças climáticas exigem uma escolha ainda mais criteriosa das espécies plantadas na cidade, para evitar árvores mais propensas a quedas e doenças.
Cavalari também defende mais investimentos em tecnologia, capacitação e contratação de pessoas para melhorar o monitoramento das árvores urbanas.
“Temos que olhar árvore por árvore, especialmente as mais idosas, e lembrar que elas são seres vivos: ficam idosas, têm comorbidades, adoecem, perdem imunidade e acabam tendo patógenos.”
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