Iniciativa do papa Francisco “por um novo tipo de economia” se espalha por 23 países e 13 cidades brasileiras. Ações incluem pesquisa acadêmica, hortas comunitárias, formações e finanças solidárias.Quando o economista Vitor Hugo Tonin recebeu o convite para participar do primeiro encontro da recém-lançada Economia de Francisco, em Assis, na Itália, ele já investigava modelos de finanças solidárias que pudessem fomentar uma rede de agroecologia. Junto ao Sindicato Químicos Unificados, Tonin estudava a implementação de uma cooperativa de crédito em que os associados pudessem realizar empréstimos a juros baixos, ao mesmo tempo em que recebem uma fatia dos recursos obtidos pela instituição financeira.
O trabalho do sindicato foi selecionado para ser apresentado em uma iniciativa lançada pelo papa Francisco, em 2019. O pontífice, falecido em abril deste ano, chamou jovens empreendedores, pesquisadores e ativistas da área econômica para criar pontes entre pessoas que se interessavam “por um outro tipo de economia”: “Uma que traga vida e não morte, que seja inclusiva e não exclusiva, humana e não desumanizante, que cuide do meio ambiente e não o destrua”, escreveu Francisco na ocasião.
A ideia não era criar um braço institucional do Vaticano, mas uma plataforma de discussão e prática para o que ele chamou de “economia do futuro”. Muitos participantes não tinham vínculo com a Igreja, por exemplo. O papa acreditava que o modelo econômico global precisava ser “reanimado”, e que isso só aconteceria se houvesse um envolvimento ativo nas realidades locais. “Suas universidades, suas empresas e suas organizações são oficinas de esperança […] para propor novos estilos de vida”, escreveu.
Em virtude da pandemia da covid-19, porém, o encontro previsto para 2020 precisou acontecer de forma online. O pontífice convidou especialistas para mesas sobre novos modelos de negócios, desigualdade socioeconômica, inteligência artificial, alternativas para o desenvolvimento e um plano de recuperação de uma economia para a paz.
“O chamado do papa organizou muita gente que estava dispersa no Brasil pensando nisso. Isso já foi importante para nós. Pudemos trocar experiências e ideias com pessoas que partilham destes princípios de construir uma nova economia, livre de exploração”, conta Vitor Tonin.
Assim como o nome escolhido para seu pontificado, Jorge Mario Bergoglio batizou a iniciativa em referência a São Francisco de Assis, que orientou seu pedido por uma igreja mais próxima dos pobres. Mais tarde, a proposta também incorporou o nome de Santa Clara de Assis. O papa lembrou, por exemplo, que franciscanos deram vida às primeiras experiências de empréstimos sem juros à população mais pobre, no final do século 15, os chamados Montes Pietatis. O modelo é tomado como precursor das iniciativas de bancos comunitários, como a assessorada por Tonin.
No encontro online, os temas discutidos fugiam de discussões estritamente eclesiais e eram sempre costurados com partilhas sobre experiências locais. Para os participantes, ficou claro que a proposta era pensar alternativas ao atual modelo econômico. Mesmo sem a atividade presencial, foi criado um grupo global, que incluía uma delegação de 100 brasileiros. Estavam lançadas as bases para iniciativas que hoje já se desdobram de forma consolidada em 23 países, todas vinculadas ao chamado do papa.
As Casas de Francisco e Clara no Brasil
Os projetos internacionais são divididos em eixos como negócios e paz, agricultura e justiça, finanças e humanidade, trabalho e cuidado e energia e pobreza.
No Brasil, a escolha da Articulação Brasileira pela Economia de Francisco e Clara (ABEFC) foi a de resgatar a concepção de “Casa Comum”, termo usado pelo papa Francisco para se referir ao planeta Terra em sua encíclica Laudato Si, e transformá-la, quando possível, em casa física.
O grupo fez uma primeira reunião em São Paulo, já em 2019, para pensar em como trazer o conceito para o Brasil. Quase seis anos depois, as chamadas Casas de Francisco e Clara se enraizaram de forma orgânica em ao menos 13 municípios e comunidades periféricas, cujos desafios da informalidade habitacional se somam à dificuldade dos moradores de acessar equipamentos e serviços públicos.
“O foco são as atividades territoriais com as pessoas preferidas de Francisco: empobrecidas, marginalizadas”, escreve a Abefc, que também já publicou quatro livros e uma dezena de artigos científicos sobre o tema.
Nestes ambientes, são desenvolvidos desde painéis solares, na Paraíba, à instalação de hortas agroecológicas, em Manaus. Também há discussões sobre economia popular, orçamento participativo e incidência junto ao poder público em locais como Minas Gerais, Curitiba e Florianópolis.
Em Campinas, por exemplo, a cooperativa de crédito do Sindicato Químicos Unificados saiu do papel em parceria com a Cresol. Até o final de 2023, duas agências abertas na região foram capazes de economizar aos associados e produtores rurais mais de R$ 800 mil em juros e tarifas não cobrados, sobras e juros devolvidos.
A cooperativa se somou a uma série de projetos que aconteciam de forma separada e que aos poucos ganharam a cara da Economia de Francisco e Clara, conta a coordenadora local da articulação, Márcia Molina.
Além do fomento financeiro, também há um curso de multiplicadores de ecologia integral; uma cozinha solidária que oferece 300 refeições por dia e hortas agroecológicas instaladas na região – uma delas no presídio feminino de São Bernardo. Também será aberto um curso de extensão sobre soberania alimentar junto à Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
“O papa Francisco tem um mérito imenso que nos une. Ele diz assim: ‘olhem-se, vejam quantos vocês são, os que lutam e constroem uma sociedade nova. Não desanimem. Fortaleçam-se se olhando'”, lembra Molina. O pontífice chegou a gravar um vídeo abençoando a cozinha solidária de Campinas.
Em Brasília o movimento se desdobrou na Sol Nascente, a segunda maior favela do Brasil, onde há distribuição de marmitas e uma casa de referência. O local recebe qualquer atividade que promova uma “ação transformadora”, como a organização de um banco comunitário, artesanato local e formações.
Economia atrelada aos saberes indígenas
Já na Bahia, uma Casa de Francisco e Clara se formou em Serra Grande, um bairro do município de Uruçuca, no sul do estado, marcado pela gentrificação e instalação de megaprojetos imobiliários.
Lá, a proposta do papa encontrou eco no trabalho do instituto Etno, fundado pela educadora indígena tupinambá Maria Agraciada, que já atua há mais de duas décadas com comunidades de base e tradicionais. “Quando a gente abre a casa de Francisco e Clara, o intuito principal é ter um lugar que o bem viver e a economia afetiva seja praticada. A gente pratica a proposta da encíclica do papa. É uma proposta concreta”, conta Agraciada.
A inspiração levou à criação, por exemplo, do modelo de casas abertas, onde um domingo por mês o instituto abre uma residência localizada na praia do Sargi e a comunidade pode ofertar materiais e serviços. “A casa de Serra Grande está sendo preparada para ser um ponto de troca de alimento. Se você produz abóbora, o outro produz inhame, cada um traz sua produção e troca os excedentes”, explica Maria.
No Rio Grande do Sul, as Casas de Francisco foram impactadas pela necessidade de agir emergencialmente durante as enchentes que atingiram o estado em 2024. Em São Leopoldo, por exemplo, a casa virou abrigo para famílias. Em Canoas, as ações se voltaram para entrega de doações, mutirões de limpeza e apoio às famílias.
“Agora na continuidade, a gente vai fazendo encontros de formação, focando na questão do projeto de vida e de como apoiar as mulheres e as juventudes. O foco é vincular a economia à questão ambiental, a partir dessa necessidade de pensar como é que os nossos bairros são atingidos pelas catástrofes desse tempo”, conta a irmã Fátima Ribas, que articula o movimento no estado.
A proposta econômica de Francisco
Ao lançar a Economia de Francisco, o papa já havia publicado dois documentos que nortearam seu pontificado, Evangelii Gaudium e Laudato Si. No primeiro, ele é taxativo. Rejeita o que chama de economia de exclusão e sistemas financeiros que “controlam no lugar de servir”.
Do ponto de vista teológico, diz que esta economia mata, e por isso, deve ser vista como um pecado. Já no segundo documento, inaugura uma discussão sobre responsabilidade ambiental dentro da Igreja. Ele entende que nem todas as soluções ambientais têm os mesmos efeitos sobre os pobres, e por isso devem ser preferidas aquelas que reduzem a miséria.
“Evangelii Gaudium é um projeto de governo em que ele coloca com muita clareza os seus princípios. E ele bebe de uma reflexão jesuíta: o tempo é superior ao espaço, a unidade prevalece sobre o conflito, a realidade é superior à ideia, e o todo é superior à parte”, resume Eduardo Brasileiro, doutorando em sociologia e articulador nacional da Economia de Francisco e Clara no Brasil.
Estas ideias que estabelecem uma Igreja “hospital de campanha”, que estaria pronta para atender as emergências dos que necessitam, ficaram claras em diversos atos simbólicos de seu pontificado, como quando visita imigrantes na ilha de Lampedusa, na Itália, ou mesmo o complexo de Manguinhos, no Rio de Janeiro.
“O papa só vai culminar a discussão sobre a Economia de Francisco em 2019, depois de oito anos dialogando com líderes de bancos centrais, lideranças políticas, falando sobre desigualdade. Ele entende os problemas do Sul Global relacionados à periferia econômica, mas ele percebe que essas coisas não andam”, continua Eduardo.
Na teoria econômica, a proposta se aproxima de umaperspectiva de decrescimento, dizem especialistas. O pontífice fala abertamente contra “o paradigma da tecnocracia orientado para a eficiência”.
No entanto, Francisco buscou uma abordagem mais pragmática, para repensar não apenas as políticas econômicas, mas também as prioridades que as moldam, explica a professora associada da Universidade de Cambridge, Antara Haldar, em artigo publicado no portal Project Sindicate.
“Francisco reconheceu uma ameaça mais profunda: a economia havia deixado de ser uma ferramenta para o avanço da prosperidade humana e havia se tornado uma ideologia que corrói a solidariedade e incentiva a indiferença”, escreveu. “Segundo essa lente, a economia e a ecologia não são campos acadêmicos separados, mas áreas interligadas de responsabilidade moral.”
Continuidade dos trabalhos
Não é incomum os pontífices discutirem a economia global sob a diplomacia do Vaticano. Mas a possibilidade de transformar a doutrina em prática e traduzir para ambientes não-eclesiais chegou como uma onda de novidade para economistas do mundo todo.
Foi o que muitos participantes sentiram em 2022, quando o primeiro encontro presencial do grupo selecionado três anos antes aconteceu em Assis, conta Vitor Tonin. Naquele ano, o papa fez o seu terceiro discurso para a Economia de Francisco e Clara e reforçou seu interesse pessoal na iniciativa. As discussões revelaram proximidades mas também diferenças entre os participantes, que vinham de 100 países.
“O ponto que mais me chamou a atenção foi quando ele falou que as ideias são importantes, mas elas podem ser perigosas quando fechadas em si mesmo, porque muitas vezes a gente fica debatendo críticas ao que existe e o que poderia ser, mas não transformamos essas ideias em prática”, diz o economista.
Para os articuladores brasileiros, a morte do papa não encerra o movimento aberto por ele. Na Bahia, por exemplo, a casa base será ampliada para uma aldeia, onde se estabelecerá uma Universidade Livre, construída em arquitetura indígena. “A gente chegou à conclusão que já temos o conhecimento que precisamos. E o que a gente não tem, a gente pode trazer para o território, não sair do território para absorver lá fora. É uma forma de preservar a nossa cultura e também os jovens”, afirma Maria Agraciada.