Para estudo, americano se submeteu a centenas de picadas de cobras peçonhentas ou injeções de veneno – tudo voluntariamente. O resultado pode dar origem a um futuro soro antiofídico universal.O medo de cobras é algo inato em nós. A mera ideia destes seres rastejantes costuma provocar arrepios, mesmo em países onde raramente topamos com eles. O instinto é tão forte que mesmo bebês com poucos meses de vida apresentam sinais de estresse ao se depararem com uma serpente.
Esse medo não é gratuito: todos os anos, picadas de cobra são responsáveis por entre 81 mil e 138 mil mortes e entre 300 mil e 400 mil sequelas permanentes.
Atualmente, picadas de cobras venenosas só podem ser tratadas com antídotos específicos, os chamados soros antiofídicos. Entretanto, a maioria deles só é eficaz contra uma ou algumas espécies da mesma família.
Além disso, os afetados – e, consequentemente, também a equipe médica encarregada de tratar o ferimento – muitas vezes não sabem qual cobra estás por trás da picada. No mundo todo, afinal, existem cerca de 600 espécies distintas de cobras peçonhentas.
Um antídoto eficaz contra o veneno de diversas cobras diferentes, portanto, poderia simplificar muito o tratamento. E aqui reside a importância de um novo estudo publicado no periódico Cell, onde pesquisadores americanos afirmam ter encontrado a base para um soro antiofídico de amplo espectro.
O voluntário que aceitou ser picado por cobras centenas de vezes
Para o estudo, os pesquisadores usaram o sangue de um doador um tanto quanto peculiar: Timothy Friede, um colecionador de cobras do estado americano de Wisconsin que aceitou se expor ao veneno de várias cobras 856 vezes ao longo de 18 anos. Ao total, Friede foi submetido a mais de 200 picadas de cobras e outras centenas de injeções de veneno mortal – tudo deliberadamente.
A ideia insólita, contudo, surgiu muito antes do estudo em questão, mais precisamente quando Friede ainda era estudante e imaginou como seria se conseguisse desenvolver imunidade contra picadas de cobras venenosas. Voluntariamente, então, ele passou a extrair o veneno de seus animais de estimação e injetá-lo diluído em si mesmo.
O resultado foi exatamente o que Friede esperava: a cada picada, seu corpo reagia desenvolvendo os anticorpos correspondentes. E ainda que suas feridas sangrassem e inchassem após cada mordida dolorosa, Friede sobreviveu a picadas dos mais diversos tipos de serpentes.
A busca pelo antídoto universal
Como Friede já vinha filmando e divulgando seu estranho hobby no Youtube desde 1998, ele acabou chegando ao conhecimento do imunologista Jacob Glanville. Foi daí que surgiu a CentiVax, empresa fundada em conjunto pelo especialista farmacêutico e o ex-mecânico de caminhões Tim Friede na busca de um soro antiofídico universal.
Dezoito anos e centenas de picadas depois, os pesquisadores identificaram dois anticorpos amplamente neutralizantes no sangue hiperimune de Friede: o LNX-D09 e o SNX-B03. O antídoto resultante se mostrou eficaz em experimentos com camundongos contra o veneno de 19 das cobras mais venenosas do mundo.
“Sem esse doador tão especial, Timothy Friede, o desenvolvimento do antídoto teria sido difícil”, avalia Michael Hust, diretor do Departamento de Biotecnologia Médica da Universidade Técnica de Braunschweig e que não participou do estudo.
Longo caminho até um medicamento
Nem todas as cobras venenosas são igualmente perigosas. Dependendo do seu grau de toxicidade, a Organização Mundial da Saúde (OMS) as classifica em duas categorias: 109 das espécies de cobras mais venenosas pertencem à categoria 1; as demais à categoria 2.
Em experimento com camundongos, o novo antídoto desenvolvido pelos pesquisadores dos EUA forneceu proteção completa contra dez cobras da categoria 1 e três cobras da categoria 2, bem como proteção parcial contra cinco cobras da categoria 1 e outra da categoria 2.
“Nas próximas etapas, o coquetel também deverá ser testado em animais maiores, já que a toxicidade dos venenos de cobra individuais pode ser diferente em mamíferos maiores e camundongos.” No entanto, ainda há um longo caminho a ser percorrido antes que possa ser desenvolvido um medicamento potencial que não seja perigoso para humanos, diz Hust.
Soros antiofídicos – um ramo não lucrativo
Hust também chama a atenção para o fato de que o desenvolvimento de antídotos talvez não seja algo atrativo para as empresas farmacêuticas. “O maior desafio no desenvolvimento de terapias para ‘doenças negligenciadas’, como o envenenamento por picada de cobra, não é científico, e sim econômico. Em outras palavras: câncer, doenças autoimunes e queda de cabelo são economicamente lucrativos. Mas será que um medicamento para picadas de cobra também é economicamente viável? Espero que Glanville e Friede obtenham sucesso no desenvolvimento deste medicamento para ajudar mais de 100 mil pessoas anualmente.”
Andreas Laustsen-Kiel, professor e chefe da Seção de Engenharia Biológica da Universidade Técnica da Dinamarca, porém, tem suas dúvidas quanto a promessa de que o novo medicamento possa curar picadas de todas as espécies de cobras.
Ele argumenta que o estudo selecionou apenas os antídotos que tiveram o efeito desejado. “Eles simplesmente selecionaram os que funcionam. Ainda que seja extraordinário, o estudo não deve resultar em possíveis exageros sobre um ‘antídoto universal prestes a ser lançado no mercado’.” Para Laustsen-Kiel, faria mais sentido focar em ‘antídotos com eficácia regional ampla’ do que na busca por um ‘antídoto universal’.
Embora reconheça as conquistas de Friede, o professor alerta que tais autoexperimentos arriscados podem “inspirar outras pessoas a fazer coisas semelhantes ‘em nome da ciência'” – algo que pode não terminar bem.