Arquivo Geral argentino disponibiliza online quase 2 mil documentos sobre atividades de criminosos de guerra no país. Enquanto isso, ONG global judaica investiga possível financiamento estatal para a “linha dos ratos”.O Arquivo Geral da Nação argentino disponibilizou recentemente, em seu website oficial, “documentos sobre a chegada e as atividades dos líderes nazistas que vieram para a Argentina após a Segunda Guerra Mundial”. Trata-se de mais de 1.850 registros originais digitalizados em alta resolução, agora livremente acessíveis.
“O valor histórico desse material é enorme”, comenta o pesquisador e autor argentino Julio Mutti, que há anos estuda as conexões entre seu país e o nazismo. “Trata-se de arquivos abrangentes, entre os quais dados de imigração e relatórios policiais sobre figuras como Mengele ou Eichmann.”
Ele se refere ao médico do campo de extermínio de Auschwitz Josef Mengele, notório por seus cruéis experimentos com seres humanos, e a Adolf Eichmann, um dos principais arquitetos do Holocausto – ou, como foi cinicamente denominado: “Endlösung der Judenfrage”, a “solução final da questão judaica”.
A rigor, não se trata de dados inéditos: muitos já haviam perdido o status confidencial em 1992, graças a um decreto do então presidente Carlos Menem. O fato de agora estarem online, porém, significa para o jornalista Facundo Di Génova “um grande progresso”, pois “assim novos indícios podem vir à luz”.
Centro Wiesenthal examina conexões insuspeitadas
Especialmente explosiva, contudo, é uma outra coleção de documentos, até então não divulgada, que o governo entregou ao Centro Simon Wiesenthal, especializado em documentar em âmbito global as vítimas do Holocausto e perseguir criminosos de guerra nazistas.
O diretor para a América Latina, Ariel Gelblung, explica que a organização está “pesquisando especificamente sobre a fuga de nazistas para a Argentina”. Entre os focos dessa investigação está o banco Credit Suisse, hoje parte do grupo UBS, suas ligações com o regime e possível participação na assim chamada “Rattenlinie” (linha dos ratos), as rotas de fuga pelas quais numerosos criminosos da Segunda Guerra chegaram à América do Sul.
“Estamos seguindo um rastro que até hoje ninguém havia analisado”, explica Gelblung. “Nós analisamos transações financeiras suspeitas, disfarçadas de missões diplomáticas ou registros de contabilidade.”
Porém aparentemente os indícios decisivos não estavam nos arquivos usuais, e “muitos dos documentos se encontravam em setores do Estado que até agora não tinham sido investigados em relação às fugas dos nazistas”.
Só após um encontro com o presidente Javier Milei decidiu-se liberar esses documentos, até então mantidos sob sigilo, e assim o Centro Simon Wiesenthal teve acesso aos registros dos ministérios da Defesa e do Exterior, assim como da biblioteca do Banco Central argentino.
Dinheiro público para salvar criminosos de guerra?
Mutti menciona em especial as atas secretas da firma de armamentos Fabricaciones Militares dos anos 1945 a 1948, as quais comprovam que essa estatal contratou pessoal e comprou material da Europa.
“Outro elo na cadeia de cumplicidade seria se ficar comprovado que essas verbas não foram empregadas para fins armamentistas legítimos, mas sim para a assistência à fuga. Isso provaria a aplicação de recursos públicos para o apoio a criminosos de guerra.”
Para o autor Di Génova, já estava mais do que na hora de que se abrissem os arquivos: “Sempre houve suspeita de que o Estado argentino sabia mais do que alegava. Essa nova transparência é um sinal, mas é preciso muito mais exposição.”
No momento, uma equipe internacional está escrutinando nos Estados Unidos e na Europa os documentos confiados ao Centro Simon Wiesenthal, e os resultados deverão ser divulgados em 2026.
Ariel Gelblung está convencido de que “há responsabilidades que até hoje não foram mencionadas”, e para ele trata-se de uma tarefa também pessoal, enquanto neto de imigrantes europeus, com que contribui para o processamento da história: “É uma forma de justiça tardia, porém importante, para as vítimas do Holocausto”, afirma.