Oscar de “Ainda estou aqui” é reparação histórica

""AindaÉ simbólico (e maravilhoso) que primeiro filme a trazer um Oscar para o Brasil seja uma obra que lembra os tempos horríveis da ditadura e homenageia seus heróis, representados em Eunice e Rubens Paiva.”O papel da literatura e do cinema é lembrar para que não se repita.” Essa frase foi dita por Marcelo Rubens Paiva em uma entrevista que fiz com ele para a DW. Depois de domingo, digo mais: a vitória da arte é conseguir fazer, depois de 40 anos do fim da ditadura militar (1964-1985), uma reparação histórica. Sim, a vitória de Ainda Estou Aqui no Oscar se trata disso: de justiça.

É simbólico (e maravilhoso) que o primeiro filme a trazer um Oscar para o Brasil seja uma obra que lembra os tempos horríveis da ditadura e homenageia seus heróis, representados por Eunice e Rubens Paiva, morto nos porões da ditadura.

O Brasil nunca foi bom em lembrar. Os crimes da ditadura foram colocados embaixo do tapete com a Lei da Anistia, de 1979, que “perdoou todos os lados”. Resultado: ao contrário de outros países da América Latina que também enfrentaram ditaduras nos anos 1970, 1980 e 1990, nunca punimos os criminosos, torturadores e golpistas. Pelo contrário, eles viveram em paz, desfrutando de generosas aposentadorias pagas com nossos impostos.

Alguns criminosos da ditadura viraram, inclusive, heróis para a extrema direita brasileira. Não podemos esquecer que o ex-presidente Jair Bolsonaro nunca deixou de homenagear Carlos Brilhante Ustra, um dos torturadores mais sanguinários da história do Brasil e chefe do centro de tortura DOI-Codi entre 1970 e 1974. Como alguém que assume publicamente ser fã de um torturador vira presidente de um país? Talvez por falta de memória. Como disse Marcelo (ele também vítima da ditadura, já que perdeu seu pai dessa maneira horrível): “É preciso lembrar para não repetir.” Talvez o Brasil nunca tenha se lembrado o suficiente.

Reabertura do caso Rubens Paiva

Ainda Estou Aqui coloca a ditadura e a resistência na história da arte brasileira. Isso é importante, mas talvez nem seja o papel mais transformador da obra. O sucesso do filme (que já foi visto por 5,2 milhões de pessoas) pode de fato mudar as coisas e fazer alguma justiça às vítimas depois de tanto tempo.

O Supremo Tribunal Federal (STF) avisou no fim de fevereiro que, devido à repercussão do filme, vai analisar se a Lei da Anistia se aplica aos crimes de sequestro e cárcere privado cometidos durante a ditadura militar. Isso pode fazer com que os assassinos de Rubens Paiva e outros desaparecidos finalmente sejam punidos.

Graças ao sucesso do filme, muitos jovens passaram também a saber do que se tratava a ditadura militar. E alguns deles resolveram, anos depois, lutar por justiça. No dia 24 de fevereiro, estudantes ativistas do Levante Popular da Juventude fizeram uma manifestação com música e cartazes na frente do prédio onde mora o general reformado José Antônio Nogueira Belham, acusado de envolvimento na tortura, morte e desaparecimento de Rubens Paiva.

Esse tipo de movimento, de denunciar torturadores em suas vizinhanças, foi comum na Argentina e no Chile, onde eram chamados de “escrachos”, mas nunca pegou no Brasil. A febre Ainda estou aqui começa, mesmo que aos poucos, a mudar esse clima de passividade, principalmente entre os jovens.

É muito importante também, claro, que o primeiro filme brasileiro a ganhar um Oscar conte a história de uma heroína “invisível” como Eunice, uma mulher que ficou nos bastidores, mas sempre lutando. A então dona de casa foi presa um dia depois do marido junto com sua filha Eliana, então com 15 anos. Libertada, ela precisou cuidar sozinha dos filhos e lutar pela verdade para tentar descobrir o que de fato tinha acontecido com o marido. Essa luta durou praticamente a sua vida toda. Ela só conseguiu sua certidão de morte em 1996. Marcelo e suas irmãs só foram saber o que de fato tinha acontecido com seu pai depois que Dilma Rousseff, outra vítima da ditadura (ela é sobrevivente da prisão e da tortura), criou a Comissão Nacional da Verdade, em 2011.

A comissão foi importante, mas ainda há muita coisa para ser investigada e muita gente precisa ser responsabilizada pelos crimes cometidos no regime. Depois de ver a paixão com que multidões celebraram a vitória do filme Brasil afora durante o Carnaval, dá até para ter esperança de que um dia a justiça seja feita. Temos mesmo muito a comemorar.

_____________________________

Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo “02 Neurônio”. Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente da DW.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.