Um ano após a maior tragédia climática do estado, autoridades seguem catalogando o impacto do desastre em museus, arquivos e bibliotecas.O restaurador Angelo Reinheimer tinha cerca de 10 anos quando, ao visitar pela primeira vez o Museu Histórico Visconde de São Leopoldo, no Rio Grande do Sul, ficou fascinado por um imenso gramofone Kosmophon nº 4 Elegant. A peça, com caixa em madeira de carvalho europeu, componentes de estanho e adornos em ferro fundido, é uma das 10 mil que compõem o acervo da instituição.
“O gramofone sempre foi uma peça especial para mim. O que mais me chamou atenção foi a grande buzina [peça metálica que amplifica o som produzido pela agulha]”, conta Reinheimer, que é atualmente secretário municipal de Cultura de Novo Hamburgo.
Quando a enchente no ano passado inundou São Leopoldo, Reinheimer esteve entre os primeiros voluntários a entrar no prédio do museu fundado em 1959 para preservar a memória da imigração alemã na região. Em meio ao caos instalado no ambiente, seu olhar recaiu espontaneamente sobre o Kosmophon. “Toquei pela primeira vez o gramofone para tirá-lo da água”, relata.
Um ano depois da enchente, o relato de Reinheimer expõe um efeito pouco conhecido da tragédia climática: o prejuízo causado ao patrimônio histórico, artístico, cultural e arquitetônico da migração.
A enchente afetou 478 dos 497 municípios do Rio Grande do Sul. Os vales dos rios dos Sinos, Caí, Paranhana e Taquari, antes sinônimo de migração sobretudo alemã e italiana, ficaram associados a momentos dramáticos da tragédia climática.
Memória da imigração
Embora o térreo tenha sido inundado, o Museu Histórico Visconde de São Leopoldo saiu quase incólume da tragédia. Além de portas e móveis, uma das maiores perdas foi um piano Schiedmayer, fabricado em 1904 em Stuttgart. O alto custo de restauração, estimado em R$ 150 mil, levou os mantenedores a optar por expor os destroços do instrumento como um tributo à memória da enchente.
A instituição reabriu as portas no dia 25 de julho de 2024, nas comemorações do Bicentenário da Imigração Alemã. “Os únicos eventos no Dia do Bicentenário em São Leopoldo foram a inauguração de um monumento, um culto na igreja luterana e a reabertura do museu”, diz Ingrid Elisabet Marxen, diretora de Relações Institucionais do museu.
Em Igrejinha, os acervos do museu e do arquivo histórico locais, que conservam importante documentação sobre a imigração alemã, tiveram destinos diferentes. As duas instituições estão situadas em pontos próximos do leito do Rio Paranhana.
No museu, a ação coordenada da prefeitura e do governo estadual permitiu salvar parte significativa dos itens. Técnicos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) trabalham, de forma voluntária, no congelamento e restauração de uma coleção de livros e partituras musicais.
A técnica de congelamento de documentos permite que manuscritos e impressos em geral sejam conservados durante catástrofes para posterior lavagem e restauração. Em geral, cada item passa por um processo de armazenamento a vácuo, de modo a não ficar em contato com outras peças.
“Igrejinha foi o primeiro município no estado a congelar acervo em papel. A técnica era inédita no Rio Grande do Sul”, afirma Dóris Couto, diretora do Museu Julio de Castilhos, em Porto Alegre, e coordenadora do Sistema Estadual de Museus, vinculado à Secretaria da Cultura do Estado (Sedac).
O arquivo de Igrejinha, porém, teve um destino mais trágico. As águas do Paranhana derrubaram uma parede e levaram toda a documentação histórica relacionada à colonização alemã.
A memória da imigração alemã não foi a única afetada. Em Muçum, uma urna funerária indígena com fragmentos de ossos foi perdida na enchente de setembro de 2023.
Patrimônio arquitetônico
Além da água, desmoronamentos de encosta também causaram prejuízos. Em Nova Petrópolis, deslizamentos de terra atingiram um dos tesouros culturais locais: as edificações em técnica enxaimel, que combina vigas de madeira e alvenaria.
Ao menos três casas históricas das 148 catalogadas no município que utilizam essa técnica foram destruídas ou danificadas. Uma delas foi a casa de Rui Artmann, conhecida como Casa Verde. A residência tinha sido construída pelo avô de Rui, Henrique Artmann.
“O enxaimel está presente em várias partes da Europa e chegou à região de Nova Petrópolis por volta das décadas de 1870 e 1880, trazido por alemães. É uma técnica muito versátil, na qual as peças são numeradas, podendo ser desmontadas e reconstruídas em outro lugar”, afirma Pedro Scheer, diretor do Arquivo Histórico Municipal Lino Grings.
Ação rápida
A ação das autoridades contribuiu para evitar uma perda maior dos acervos históricos. Em setembro de 2023, apenas oito meses antes da tragédia de maio, uma inundação havia castigado severamente os municípios do Vale do Taquari. Em Muçum, voluntários descartaram todo o acervo documental do museu local juntamente com resíduos da enchente.
O coordenador de Cultura, Turismo, Esporte e Eventos de Muçum, Ivan Rodrigues, conta que foi até o prédio do museu no dia 7 de setembro, quatro dias depois da inundação, e orientou voluntários a separar os itens que poderiam ser recuperados. “No dia seguinte, quando cheguei lá, já não tinha mais nada do que eu tinha guardado. [Os voluntários] atiravam [itens] pela janela”, diz.
Durante as enchentes em maio, a Sedac enviou ofícios aos secretários municipais de Cultura com a orientação de que vedassem portas e janelas de museus com tapumes a fim de impedir o ingresso de estranhos antes da chegada de equipes avaliadoras.
Perdas ainda inestimadas
Em julho do ano passado, o governo do estado estimou em 50 o número de museus atingidos, com perdas que iam desde destruição completa até infiltrações, quedas de telhados e transbordamento de calhas. A essa devastação, somam-se os danos a arquivos públicos, bibliotecas e coleções privadas.
Autoridades e organismos internacionais ainda não têm um levantamento completo do que foi perdido. Uma missão da Unesco, braço das Nações Unidas para a cultura, visitou o Rio Grande do Sul em julho para oferecer assistência e avaliar o patrimônio atingido.
A recuperação do que escapou da água e da lama continua a pleno vapor. Desde o ano passado, o restaurador Cesar Fuhr, de Morro Reuter, dedica-se a consertar peças do Museu Histórico Visconde de São Leopoldo, incluindo uma tiorba, espécie de alaúde de sete cordas.
No final de março, Fuhr começou a trabalhar no gramofone Kosmophon recuperado por Reinheimer. O aparelho continha uma surpresa melancólica: ao abri-lo, um filete de água retida no interior da peça desde a enchente escorreu sobre sua mesa de trabalho.