Estaria a aliança transatlântica com os dias contados?

"ParticipaçãoAo questionar valores da Europa na Conferência de Munique, EUA parecem reinterpretar cola ideológica que manteve europeus e americanos unidos.O silêncio se espalhou pelo salão, a tensão era quase palpável quando o vice-presidente dos Estados Unidos, JD Vance, subiu ao púlpito da Conferência de Segurança de Munique nesta sexta-feira (14/02).

Apenas dois dias antes, o mundo parecia ser um lugar diferente. É claro que os europeus já haviam percebido que seria difícil lidar com o presidente americano Donald Trump e que seu segundo mandato na Casa Branca seria um teste para as relações entre os Estados Unidos e a Europa.

No entanto, um telefonema entre Trump e o presidente russo Vladimir Putin, na noite de quarta-feira, provocou ondas de choque na União Europeia e na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Os europeus temem ser completamente marginalizados nas conversas sobre a Ucrânia – talvez até mesmo na reorganização da ordem internacional.

O presidente da Alemanha, Frank-Walter Steinmeier, soou quase suplicante quando se dirigiu diretamente a Vance em seu discurso de abertura na Conferência de Segurança de Munique: “O que quer que vocês planejem, discutam conosco!”

Já a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, mostrou-se autoconfiante ao defender que a Europa deve e vai gastar muito mais dinheiro com defesa, expandirá suas capacidades de armamento. Mas ressaltou que a Europa já fez muito, e que vê-la forte é de interesse dos EUA. “Uma Ucrânia derrotada enfraqueceria a Europa, mas também enfraqueceria os Estados Unidos. Os regimes autoritários de todo o mundo estão observando atentamente para ver se é possível sair impune invadindo vizinhos e violando fronteiras internacionais ou se há um verdadeiro limite”, disse.

“O que estamos realmente defendendo?”

Já J.D. Vance falou por 18 minutos, mas evitou mencionar a segurança externa da Europa ou a Ucrânia. Em vez disso, deu uma espécie de palestra sobre o que o governo Trump considera ser a democracia.

Segundo Vance, a Europa sempre enfatiza os valores comuns, mas nos EUA as pessoas estão “preocupadas com o que são esses valores”. A maior ameaça ao continente europeu não seria a Rússia nem a China, mas viria de dentro, com a Europa abandonando alguns de seus valores mais fundamentais.

Um sinal disso, no raciocínio de Vance, seria a anulação das eleições presidenciais na Romênia, que ele considera legítimas – a Suprema Corte do país cita evidências de influência russa. Os eleitores europeus estariam preocupados com a imigração, e a liberdade de expressão na Europa estaria “em retrocesso”, apontou ao condenar a existência de “cordões sanitários” na política.

Vance não citou explicitamente o partido de ultradireita Alternativa para a Alemanha (AfD), que até agora é mantido afastado do poder pelos demais partidos alemães no parlamento, mas é o segundo colocado nas intenções de voto.

Momentos depois de discursar, Vance esteve com a líder e principal candidata da sigla, Alice Weidel, segundo um porta-voz da AfD. Outro emissário do governo americano, o bilionário Elon Musk, tem trabalhado para eleger o partido anti-imigração e eurocético.

“Não sabemos nem mesmo o que estamos realmente defendendo neste mundo. O que vocês estão defendendo?”, indagou à plateia de aliados europeus, em sua maioria perplexos.

Críticas contundentes ao discurso de Vance

“O vice-presidente dos EUA questionou a democracia em toda a Europa. E se eu o entendi corretamente, ele está comparando as condições em partes da Europa com as de regiões autoritárias”, reagiu o ministro da Defesa da Alemanha, Boris Pistorius. “Isso não é aceitável. Essa não é a Europa e não é a democracia na qual eu vivo e na qual estou fazendo campanha atualmente.”

O chanceler federal da Alemanha, Olaf Scholz, também criticou a fala de Vance. “O que foi dito aqui é irritante e não pode ser simplesmente descartado e minimizado”, disse à rádio Deutschlandfunk. “Precisamos de um cordão sanitário”, insistiu, aludindo à experiência traumática da Alemanha com o nazismo.

Para Cathryn Clüver-Ashbrook, cientista política da Fundação Bertelsmann e ex-diretora do Conselho Alemão de Relações Exteriores (DGAP), o discurso de Vance rompeu com o protocolo. “Mas de uma forma diferente do que se poderia esperar”, afirma à DW. Normalmente, não se comenta sobre questões políticas internas com aliados em um contexto como esse – uma conferência destinada a discutir majoritariamente questões de segurança.

Para Clüver-Ashbrook, o discurso revela “quais estratégias podemos esperar na distorção do que consideramos ser democracia em seu entendimento factual, fundamental e também baseado em normas”. “O primeiro terço do discurso foi salpicado de teorias da conspiração, desinformação e um convite para levar essas distorções a sério”, comenta.

Normas deformadas

Ao longo do discurso de Vance, ficou claro que a discordância transatlântica não é mais “apenas” sobre os pontos problemáticos do mundo, a Ucrânia, o Oriente Médio ou a divisão justa de fardos. A ruptura no relacionamento entre os EUA e seus parceiros europeus é muito mais fundamental.

Durante décadas, a tão aclamada “comunidade de valores” foi a cola ideológica que manteve o mundo ocidental unido. Os aliados da Otan e da UE sempre podiam invocar a defesa da democracia, da liberdade de opinião e do Estado de Direito. Mas agora esses conceitos estão sendo sequestrados, reinterpretados e reformulados por partes da elite política, e não apenas nos EUA. E essa divisão agora atravessa a aliança entre estes países.

Mas como os europeus devem lidar com a nova situação? Clüver-Ashbrook diz que a capacidade europeia de exercer influência deve agora ser “completamente repensada”. O primeiro passo será se colocar na nova perspectiva dos EUA e definir o que eles podem oferecer a Washington para enfatizar novamente os pontos em comum.

Isso foi muito mais fácil durante o primeiro mandato de Trump, porque ainda havia interesses semelhantes. “O presidente [dos EUA] está muito mais isolado agora. Elon Musk poderia ter escrito o discurso de Vance”, argumenta Clüver-Ashbrook. Por isso, diz, é ainda mais importante a Europa se apresentar em uma frente unida.

China acena com simpatia

Na conferência, o apoio aos europeus veio de um lugar muito mais inesperado. O discurso polêmico de Vance foi imediatamente seguido por uma aparição do Ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi, que adotou um tom muito mais conciliatório em relação ao velho continente.

Ele vê a Europa e a China como “parceiros, não rivais”. Para Pequim, a UE “sempre foi um polo importante no mundo multipolar”. “Devemos preservar o sistema internacional liderado pela ONU”, disse Wang. Para ele, a Europa desempenha um “papel importante” no processo de paz na Ucrânia.

Após esse memorável primeiro dia da Conferência de Segurança de Munique, uma coisa está clara: a estrutura de poder global está diante de uma enorme reviravolta. E o resultado está mais incerto do que nunca.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.