Chile: Polêmicas rodeiam expropriação de antiga seita alemã

"HojeColonia Dignidad, fundada por Paul Schäfer, foi palco de crimes e violações de direitos humanos na ditadura de Augusto Pinochet. Vítimas e colonos defendem interesses conflitantes.Quando, em junho de 2024, o presidente Gabriel Boric anunciou a expropriação de uma parte dos terrenos da antiga Colonia Dignidad, a iniciativa foi celebrada não só no Chile, como também na Alemanha. Era um passo decisivo para a criação de um memorial e um centro de documentação num lugar onde, ao longo de décadas, cometeram-se crimes atrozes.

A colônia no sul do Chile foi fundada em 1961 pelo pregador laico Paul Schäfer, que havia fugido da Alemanha devido a alegações de abuso infantil. Ele foi seguido por cerca de 300 compatriotas.

Nas décadas seguintes, o assentamento alemão seria palco de múltiplas violações de direitos contra moradores da região e da própria colônia. Durante a ditadura de Augusto Pinochet, o local foi usado para detenção, execução e desaparecimento de prisioneiros políticos. Schäfer fugiu da colônia em 1997, e morreria na prisão em 2010.

Hoje, a criação de um memorial é um dos mandatos da Comissão Conjunta Chile-Alemanha para a Colonia Dignidad, que encomendou uma proposta a um grupo bilateral de especialistas.

Para implementar a ideia apresentada há quatro anos, o Estado chileno precisa assumir alguns dos edifícios da Villa Baviera, hoje um centro turístico e gastronômico de propriedade privada na mesma zona da colônia.

“Oito meses após o anúncio, não há nada, o processo de desapropriação não foi iniciado, há apenas o decreto”, comenta a advogada Mariela Santana, representante dos familiares dos desaparecidos na Colonia Dignidad durante a ditadura militar.

Presidente alemão vai ao Chile

A próxima visita ao Chile do presidente alemão, Frank-Walter Steinmeier, no início de março, pode ser um impulso para o progresso da questão na agenda bilateral. Representantes de grupos de vítimas e parentes de presos políticos e desaparecidos na colônia se reuniram recentemente com autoridades.

“Como Steinmeier está chegando, essa reunião foi para cumprir e dizer que eles se reuniram com os parentes. Desde o anúncio, esta é a primeira vez que nos reunimos para tratar desse assunto”, diz Santana, que relata desconforto entre vítimas e familiares. “Achávamos que iam nos dizer como estava o processo, mas foi uma consulta sobre quais outros lugares considerávamos relevantes para ser objeto de expropriação.”

Seis locais aparecem no aviso de expropriação: a casa de Schäfer, o prédio que hoje funciona como restaurante, o prédio da administração e do hotel, o armazém de batatas, o hospital e o alojamento do porteiro.

Esses edifícios se encontram numa área de 183 hectares que foi declarada monumento histórico em 2016. Algumas organizações solicitam a inclusão de outros pontos, como armazéns e túneis onde ocorreram prisões, ou túmulos em que supostamente foram enterrados prisioneiros políticos.

Elas argumentam que não se deve expropriar lugares ou edifícios de forma isolada, mas sim formar um cinturão para permitir acesso e trânsito entre eles, que pode abranger toda a área do monumento histórico ou até mesmo uma zona maior.

Crimes e violações de direitos humanos

“A Colonia Dignidad é um caso de múltiplas e gravíssimas violações de direitos humanos, e um caso único na história das ditaduras na América Latina, de uma associação ilícita de oficiais do Exército aliados a uma colônia de estrangeiros, que prestavam serviços de Inteligência”, observa o deputado local Roberto Celedón.

O parlamentar expressou ao Ministério da Justiça do Chile sua preocupação com relação ao progresso da iniciativa do memorial, indicando que se espera “um trabalho detalhado em fevereiro sobre as áreas específicas que seriam desapropriadas e o procedimento a ser usado.” Um estudo topográfico já foi realizado, segundo Santana.

Cerca de 100 pessoas teriam sido assassinadas e desaparecido na colônia. Crianças chilenas de famílias da região também foram abusadas, sequestradas e adotadas ilegalmente, e os membros do enclave viviam num regime sectário sob o domínio de Schäfer. Eles foram vítimas de abuso sexual, punições brutais, medicação forçada e trabalho escravo.

“Pedimos para ser ouvidos”

Quando Schäfer fugiu, a colônia passou por um processo de abertura. Alguns colonos foram embora. Outros passaram a residir no local e estabeleceram um hotel, um restaurante e um centro de eventos, como meio de subsistência nas mesmas áreas que agora são identificadas como de interesse histórico.

“Entendemos a motivação do governo e nos solidarizamos com a dor das vítimas de violações dos direitos humanos durante a ditadura militar e de suas famílias. Portanto, em princípio, não nos opomos à criação de um memorial”, diz a administração da Villa Baviera em nota. “Pedimos para ser considerados e ouvidos no processo, porque a Vila Baviera é a nossa casa. Em parte dos edifícios que serão desapropriados, vivemos e desenvolvemos nossa vida cotidiana.”

Há também uma residência com 12 idosos, vários dos quais, acamados. Eles pedem que também sejam reconhecidos como vítimas de abuso psicológico, físico e sexual por Schäfer. Argumentam, ainda, que foram “abandonados à própria sorte por décadas, tanto pelo Estado chileno quanto pelo Estado alemão.”

Espaço em conflito

A administração de Villa Baviera afirma que somente no armazém de batatas teria sido comprovada judicialmente a ocorrência de violações de direitos humanos durante a ditadura. A proposta de expropriação dos especialistas, no entanto, inclui locais onde vários crimes foram cometidos, inclusive contra os próprios colonos, considerando-se as narrativas e lembranças de diferentes grupos de vítimas.

Com uma eventual indenização por estes crimes, os residentes poderiam iniciar uma nova fase e levar suas atividades comerciais e moradias para fora da zona na qual se concentra o conflito.

Atualmente, as terras pertencentes às empresas de Villa Baviera têm mais de 7 mil hectares. No entanto, a administração estima que, “várias famílias ficariam sem teto e sem a possibilidade de construir uma nova casa na Vila”.

Mariela Santana adverte que “haverá reação à desapropriação por parte dos proprietários da terra, e uma batalha legal é iminente”. A administração da Villa Baviera antecipa ações legais.

Turismo e memória

Em resposta às críticas de que uma cena de crime serve a turismo e festividades, a administração aponta a existência de um pequeno museu. Embora não esqueçam ou ignorem o passado, querem deixá-lo para trás: “O turismo é uma forma de resiliência para nossa comunidade. Além de todas as brutalidades que aconteceram aqui, que reconhecemos e fazem parte de nossa história, também queremos olhar para frente.”

A comunidade espera chegar a um acordo que permita a criação de um local de memória e, ao mesmo tempo, mantenha o turismo e a moradia. Inicialmente, a administração levou suas preocupações às autoridades, mas relata que depois as portas foram se fechando, reuniões foram recusadas e ninguém os incluiu no processo.

Por sua vez, a advogada Santana argumenta que “não é possível que tenhamos apenas uma placa que foi colocada por um grupo em um armazém” mais de 60 anos após a criação da Colonia Dignidad: “Para garantir que não haverá repetição, é muito importante ter um local de memória.”

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