‘Cometi atos abomináveis’, diz médico acusado de agredir sexualmente quase 300 crianças


Joel Le Scouarnec começou a ser julgado nesta segunda-feira (24), na França. Logo no primeiro dia de audiência ele admitiu a autoria dos fatos. Ilustração realizada no primeiro dia do julgamento do médico Joel Le Scouarnec, acusado de ter agredido sexualmente 299 pacientes, a maioria deles crianças.
Valentin Pasquier/AP
O médico Joel Le Scouarnec, acusado de estuprar e agredir sexualmente 299 pacientes, a maioria menores de idade, começou a ser julgado nesta segunda-feira (24), em Vannes, no oeste da França. Logo no primeiro dia de audiência ele admitiu a autoria dos fatos e confessou ter cometido “atos abomináveis”.
“Se estou comparecendo diante de vocês, é porque um dia, quando a maioria [das vítimas] era apenas crianças, cometi atos abomináveis”, disse o acusado de 74 anos com voz hesitante.
“Estou perfeitamente ciente hoje de que essas feridas são indeléveis, insubstituíveis, e não posso voltar no tempo”, acrescentou, dizendo que queria “assumir a responsabilidade” por seus atos e “pelas consequências que eles podem ter tido para o resto de suas vidas”.
Le Scouarnec reconhece a “imensa maioria dos fatos”, disse seu advogado Maxime Tessir. “Ele não pretende, de forma alguma, fugir de suas responsabilidades”, acrescentou.
O médico pode pegar 20 anos de prisão por 111 acusações de estupro e 189 de agressão sexual cometidos entre os anos de 1989 e 2014. Os casos são agravados pelo fato de que ele abusou de sua posição como médico e que 256 das 299 vítimas tinham menos de 15 anos quando foram agredidas.
As vítimas “não esperam nada” do único réu, declarou à imprensa Marie Grimaud, advogada de 39 ex-pacientes. Mas elas “esperam recuperar um pouco de dignidade, humanidade e, acima de tudo, consideração por parte da Justiça”, completou.
Dado seu grande número, as vítimas acompanham o julgamento em uma sala anexa ao tribunal de Vannes, cidade de menos de 55 mil habitantes, que teve que montar uma estrutura especial para o processo. Os pacientes e seus familiares irão à sala principal apenas para depor perante o tribunal, que tem grande repercussão na imprensa francesa.
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Diário do médico foi estopim do processo
O caso começou oficialmente em 2 de maio de 2017, quando a casa de Joel Le Scouarnec foi revistada pela polícia. Alguns dias antes, sua vizinha havia apresentado uma queixa. Ela acusou o cirurgião de atacar sexualmente sua filha de 6 anos através da cerca do jardim.
Três anos depois, em 2020, ele foi condenado a 15 anos de prisão por estupro e abuso sexual dessa menina, bem como de uma paciente e duas de suas sobrinhas.
Esse primeiro caso abriu uma “caixa de Pandora”, pois durante as buscas na residência do médico a polícia descobriu não apenas pornografia infantil, como também dezenas de diários nos quais ele descrevia minuciosamente seus crimes e suas vítimas.
As informações encontradas revelaram que as agressões já duravam mais de duas décadas e que centenas pessoas, principalmente crianças, teriam sido abusadas por Le Scouarnec.
Em seus cadernos de anotações, o próprio cirurgião detalha seu modus operandi: as vítimas eram agredidas ou estupradas quando estavam sozinhas, dormindo ou em coma, em seus quartos, na sala de cirurgia ou na sala de recuperação após uma operação.
Os atos geralmente eram cometidos sob o pretexto de procedimentos médicos, pois Joel Le Scouarnec operava regularmente em casos de apendicite.
“Como médico, ele fez um juramento e traiu ao máximo as obrigações desse juramento”, enfatiza Cécile de Oliveira, advogada de várias vítimas.
Em milhares de páginas, além dos detalhes de seus atos, o cirurgião indicava a data e o local da agressão e o primeiro nome da criança. Esses relatos eram escritos sob forma de uma carta para a vítima, muitas vezes terminando com um “Eu te amo”.
No decorrer de suas investigações, a polícia cruzou os nomes das crianças com os registros dos locais onde Le Scouarnec havia trabalhado e conseguiu identificar as vítimas que, na maior parte dos casos, não sabiam que haviam sido agredidas, pois estavam anestesiadas.
“Normalmente, são as vítimas que procuram o departamento de investigação para reclamar. Nesse caso, é o contrário: foram os departamentos de investigação que descobriram a existência de vítimas que, às vezes, foram informadas pela polícia que haviam sido tocadas, agredidas sexualmente ou estupradas”, explicou em entrevista à RFI o juiz Ronan Le Clerc, que conduz o processo.
Conselho de medicina criticado
Caso Gisèle Pelicot: francês que dopava a esposa para estupros é condenado
“Médicos agressores, estupradores. O Conselho de Médicos é cúmplice”, dizia uma faixa exibida em frente ao tribunal, pouco antes do início do julgamento. Cerca de 30 manifestantes formaram com letras a frase “Pare a lei do silêncio”.
Os manifestantes contestam o fato de que as autoridades médicas já sabiam há anos que Le Scouarnec representava um risco para seus pacientes.
Em 2004, o FBI havia identificado seu nome durante uma investigação sobre a compra de pornografia infantil em sites russos. A polícia francesa foi informada e, no ano seguinte, ele foi condenado a quatro meses de prisão com sursis.
No entanto, nenhuma obrigação de tratamento ou proibição de exercer a medicina foi imposta. O hospital de Quimperlé, também na região, onde ele trabalhava nessa época, chegou a ser informado, mas manteve Le Scouarnec no cargo, alegando que ele era “um médico sério e competente”.
Um de seus colegas, um psiquiatra, foi informado da condenação e alertou o hospital sobre o comportamento anormal e perverso do cirurgião. Ele aconselhou Joel Le Scouarnec a se demitir e, sem sucesso, pediu à direção que impusesse a presença de uma terceira pessoa durante as operações em crianças. Sua solicitação não foi atendida.
No hospital de Jonzac, onde ele começou a trabalhar em 2008, a direção foi imediatamente informada de sua condenação. Mas, também nesse caso, nenhuma medida foi tomada. Joel Le Scouarnec continuou a trabalhar com crianças até sua aposentadoria, em 2017.
O julgamento, que durará quatro meses, acontece dois meses depois de outro processo que chocou a França e o mundo: o do estupro em série de Gisèle Pelicot, pelo qual 51 homens foram condenados.
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