A luta de uma mulher por uma Síria livre

"HudaQuando o regime de Assad caiu, Huda Khayti retornou a sua cidade natal, Duma. Lá encontrou ruínas e tristes lembranças do passado – e a determinação para ajudar a reconstruir a Síria.Huda Khayti sempre soube que esse dia chegaria. O mundo já havia praticamente esquecido a Síria, e o sofrimento da população era apenas uma nota marginal na imprensa mundial, mas ela jamais deixara de ter esperança.

Khayti optara por não sair da Síria porque sabia que um dia a ditadura de Bashar al-Assad cairia, que o povo ia se libertar de suas garras. E quando isso realmente aconteceu, ela sentiu um alívio que mal consegue expressar em palavras. “Eu sabia que o derrubaríamos.”

De forma completamente inesperada, o grupo islamista Organização para a Libertação do Levante (Hayat Tahrir al-Sham, ou HTS), liderado por Abu Mohammed al-Jolani, hoje também conhecido pelo seu nome verdadeiro, Ahmed Hussein al-Shara, conseguiu derrubar o regime de Assad. Em dezembro de 2024, o HTS avançou a partir de seu reduto, em Idlib, e poucos dias depois entrou em Damasco. Assad fugiu do país O resto é história – e o início de um futuro incerto para a Síria.

De volta ao futuro

Um recomeço que, também para Khayti, não é totalmente tranquilo. Muito foi destruído, muitos foram mortos. Com a vitória do HTS, ela partiu de Idlib para Duma, de volta à cidade que um dia havia sido seu lar. A cada quilômetro o medo aumentava, mas também a determinação. Ela precisava ver o que restava de sua antiga vida.

Quando finalmente chegou a Duma, em meio às ruínas, só viu destruição. Onde antes ficava sua casa, havia apenas escombros e lembranças do passado. ETentou encontrar o túmulo de seu irmão, morto num ataque aéreo do regime e seus apoiadores: “Eu não sabia onde o enterraram”, diz, com a voz embargada. “Ele provavelmente está numa vala comum.” Ela conta que na cidade o cheiro de jasmim paira no ar, em estranho contraste com a devastação cinzenta.

Finalmente chegou à casa dos pais: as paredes estavam destruídas, parte do telhado havia desabado. Ela entrou com cuidado, e cada passo despertava uma lembrança. “Não aguentei cinco minutos lá dentro.” Na casa onde seu irmão foi morto, os vestígios do ataque ainda eram visíveis. “Eu me lembro do dia em que aconteceu. Essa injustiça me sufoca.”

Khayti conta que, naquele momento, tomou uma decisão: ela não deixaria o desespero dominá-la. “Eu lutei contra Assad, e lutarei contra esses sentimentos também. Eu vou viver e reconstruir este país junto com os outros.”

Flores e árvores como símbolos da vida

Um primeiro passo: com o apoio da Defesa Civil Síria e de outras organizações, ela e outros moradores estão plantando flores e árvores num parque de Duma. Khayti diz querer enviar um sinal de que a vida está retornando, de que a Síria não é apenas um país de feridas, mas também de esperança.

Até a guerra começar, Khayti havia passado quase toda sua vida em Duma, cresceu lá e estudou literatura francesa em Damasco. Mas sua revolução pessoal começou muito antes da revolta de 2011. Cedo percebeu o quanto o regime de Bashar al-Assad estava privando as mulheres de seus direitos e oprimindo sua própria população.

Determinada a mudar essa situação, fundou três centros para mulheres em Ghouta Oriental. Junto com outras companheiras, organizou workshops sobre violência de gênero, deu cursos de primeiros socorros e de inglês e informou sobre os direitos das mulheres. Mas a guerra não poupou nada. Em 2013, um ataque com gás venenoso atingiu Ghouta Oriental, e mais tarde os três centros de Khayti foram bombardeados.

Fuga para Idlib, retorno a Duma

Em 2018, quando o regime retomou a região após anos de cerco, Khayti teve que deixar Duma. Milhares foram deslocados, e membros da oposição e civis foram para Idlib – o último reduto contra Assad, controlado pelo HTS.

Khayti não desistiu. Ela construiu um outro centro feminino em Idlib, embora o domínio do HTS impusesse limites. “Não foi fácil. Tivemos restrições, tivemos que nos adaptar, mas continuamos mesmo assim.”

Em dezembro de 2024 finalmente chegou o dia da queda de Assad e de seu regime. Khayti estava em Idlib quando Damasco foi tomada pelos grupos rebeldes. “Corri imediatamente para a Praça da Liberdade em Idlib. Abracei as pessoas, beijei, nós rimos e choramos, foi tudo muito emocionante.” Ainda hoje ela chora quando se lembra desse momento. “Esta cidade havia nos acolhido quando fomos deslocados, e finalmente podíamos sentir que algo novo estava começando.”

Na manhã seguinte, já estava na estrada, passou por uma cidade libertada após a outra e ergueu a nova bandeira síria. “Olhem onde estou, estamos de volta”, escreveu para os amigos, enviando os vídeos e fotos que fizera. “A todos que escreveram ou falaram com tanto desprezo sobre nós, sírios, eu digo: vejam, nós conseguimos e reconstruiremos este país.” Duma foi sua última parada.

Jihadistas moderados?

Khayti prefere ser otimista, mesmo sabendo que não será fácil. A Síria enfrenta enormes desafios. “A economia está em ruínas, a situação de segurança também é frágil”, diz. Após quase 14 anos de guerra e o devastador terremoto de 2023, grandes partes do país, da economia e da infraestrutura estão destruídas.

Há apenas algumas horas de eletricidade por dia. Segundo a Médicos Sem Fronteiras, 16,7 milhões dos 21,3 milhões de sírios dependem de ajuda humanitária. O Unicef estima que 2 milhões de crianças não frequentam a escola, e 7 mil escolas foram destruídas durante a guerra.

Hoje quem ocupa o Palácio Presidencial é Ahmed al-Shara, presidente interino da Síria desde o fim de janeiro. Ele já foi chamado de muitas coisas nos últimos meses: líder rebelde, novo homem forte da Síria, islamista, ex-terrorista, jihadista. Se muitos rejeitam as práticas do HTS, outros apoiam Shara como o libertador de Damasco e dizem: “Contra Jolani, mas com Shara”.

Há grande ceticismo em relação aos novos ocupantes do Palácio Presidencial. Mas muitos sírios estão tentando se concentrar na reconstrução do país. Os antigos jihadistas se apresentam como moderados, e a população espera que essa impressão se confirme.

Khayti, que viveu em Idlib sob o governo do HTS, conta que há um ano houve protestos contra os então governantes da cidade, e lembra que sofreu restrições em seu trabalho como chefe de uma organização para mulheres. “Em Idlib eles tinham um outro papel, agora são responsáveis por toda a Síria. Mas posso garantir uma coisa: se algo der errado, certamente não vamos aceitar.”

Khayti segue firme na sua crença num futuro mais justo para a Síria, e hoje se divide entre Idlib e Duma. “Somos uma sociedade nova, que conhece seus direitos e não se deixará ser novamente oprimida.” Seu plano é abrir mais centros femininos em outras cidades, a fim de incentivar ainda mais mulheres a se tornarem politicamente ativas. Ela também quer criar uma organização para proteger o meio ambiente. “Todo país que quiser nos ajudar na reconstrução é bem-vindo. Mas não queremos mais interferência estrangeira.”

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