Ainda estamos aqui, e vamos continuar por um bom tempo

Muita gente interrompeu seu Carnaval para acompanhar o Oscar de 2025. Boa parte dos 5 milhões de espectadores brasileiros que foram ao cinema torceram pra Fernanda Torres e pro filme “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles Jr. Fernanda concorria a Melhor Atriz do mundo, o filme a Melhor Filme no mundo do Oscar, uma festa do cinema americano que se torna mundial aos poucos.

Todos torcemos pra ganhar melhor atriz e melhor filme. Como disse Selton Melo, outro grande ator do filme, clima de Copa do Mundo, só que no meio do Carnaval. Ganhar ou perder depende de muito fatores que não se controla, inclusive de alguma sorte. Claro, depende também dos concorrentes, e, neste ano, tivemos bons concorrentes de outras terras, o que valoriza nossos candidatos. Estar na lista curta já é uma grande vitória. Ganhar, maior façanha ainda. Mérito, qualidade e competência não dependem de votação, e nossos candidatos têm muitos méritos, como poucos no planeta podem dizer que têm.

Fernanda Torres tem uma carreira versátil, com muita experimentação de gêneros e de mídias, sempre concentrada e aprimorando seu trabalho.

 

Filha de bons atores? Sim, é verdade, mas se não fosse por méritos próprios, jamais seria a excepcional atriz que é. Neste filme, ainda contou com a direção efetiva, segura e sem concessões pra interpretação extrovertida e midiática que o diretor Walter aportou para o filme todo, inclusive pra Fernanda-filha. Impossível não ficar orgulhoso de ter esta atriz nos nossos cinemas, na nossa televisão e nos nossos teatros. Rindo, chorando e se divertindo com ela. Agora o mundo todo a conhece. Viva Fernanda-filha!

Em geral todos comentamos sobre a importância do tema do filme, “ainda estamos aqui”, baseado num dos muitos livros de Marcelo Rubens Paiva, Rubens-filho. O filme tem este DNA, mas é uma abordagem pessoal de Walter. É um ótimo filme, pouca gente se lembra de falar. Não é um texto sobre o assunto, não é uma reportagem, é uma história contada em filme.

O filme é um trabalho maduro, consciente e bem preparado do diretor Walter Salles Jr que, embora sem querer aparecer, é o grande maestro desta obra.

Ele tem uma carreira consagrada por diversos filmes notáveis, além de experimentar muitos tipos (gêneros) de filmes, todos com sua marca autoral. Sem badalar nem frequentar festas dos “mais famosos”, Walter segue sua carreira com consistência e muita reflexão, atento ao que se passa ao seu redor, inclusive no mundo do cinema. Sempre tem a marca do seu talento e calma, é capaz de ficar anos sem filmar e, depois desta pausa, trazer uma obra excelente como “Ainda Estou Aqui”.

As qualidades do filme independem da premiação, e por isso, podemos festejar, mais do que um tema, pertinente e importante, por certo.  Trata-se cinema de alta qualidade, dos melhores da cinematografia brasileira. Primeiro de tudo, e talvez mais importante, é um filme gostoso de se ver, um pouco incomodo é verdade, cinco milhões de espectadores nos cinemas do Brasil atestaram. Além disso, é uma obra de arte que propõe reflexão, papel importante da arte.

Na primeira parte do filme, uma família de bairro do Rio de Janeiro mora numa casa florida de muitos filhos, mais seus amigos e mais os amigos do casal Eunice e Rubens-pai. A casa fica apertada de tanta gente e de tanta energia alegre e afetuosa. Na tela, cores fortes e movimentos de câmera soltos acompanham toda aquela alegria, como se de fato o mundo fosse uma festa alegre e sem preocupações maiores que a rotina do cotidiano. Raramente vimos crianças tão bem dirigidas, raramente vimos atrizes e atores com excelentes interpretações mesmo em papéis secundários, raramente vimos composições visuais tão precisas e sem concessões ao padrão menos elaborado que as redes sociais nos apresentam. Mérito de quem? Do diretor, da equipe técnica, das atrizes e atores.


José Roberto Sadek, professor de roteiro nos cursos de Cinema e de Cinema de Animação da Faap
José Roberto Sadek, professor de roteiro nos cursos de Cinema e de Cinema de Animação da Faap • Divulgação/Faap

Na segunda parte, Rubens-pai é levado pela “polícia”. Entra naquele carrinho baixo dos agentes com uma altivez e dignidade que só atores como Selton Mello são capazes de apresentar. O filme fica mais frio, mais sofrido, mais distante, uma decisão autoral que escolhe esta estética. Em vez de mostrar cenas explícitas de tortura e maus tratos, gerar mais indignação, promover uma catarse e resolver tudo ali mesmo na sala de cinema, o diretor prefere que tenhamos este incômodo por mais tempo, até sair do cinema, até agora, até mais no futuro. Mostra tudo, mas com sutilezas, muitas vezes do tipo “quem entendeu OK, quem não entendeu, não deixará o filme de lado”. Caso por exemplo da cena em que Eunice, na cadeia solitária, limpa seu corpo como se tivesse alguma sujeira impregnada na sua pele.

Na terceira parte do filme, Eunice decide levar a criançada pra São Paulo, foram todos          amontoados num carrinho que parece que mal chegaria até a esquina. Foram. Seria a única maneira de ser deixada em paz pelos vigias da repressão, que continuavam a achar que naquela casa havia muito mais coisas do que eles encontraram. Nesta parte, a direção escolhe fazer um mosaico de momentos relevantes daquela família até que a certidão de óbito de Rubens-pai fosse emitido décadas depois. É um atestado de sua morte pela ““polícia””.  Contar a história de Eunice e seus filhos em detalhes seria outro filme, longo, e o diretor optou conscientemente por mostrar o ciclo de superação de Eunice sem pieguice até toda a criançada estar adulta, resolvida, com a vida encaminhada.

Para que estes momentos ficassem nítidos, ainda que discretamente, foi necessário muito estudo, muito talento de todos, e muita habilidade e conhecimento de linguagem cinematográfica, principalmente do diretor Walter, que dirige aquela coisa toda: ângulos e movimentos de câmera precisos e apropriados, direção de arte precisa e com paleta de cores bem adequada, edição atenta e fluida, interpretações excecionais de atrizes a atores de todas as idades pra mostrar o que interessa da maneira que interessa ao projeto.


Fernanda Montenegro interpreta Eunice Paiva na velhice em "Ainda Estou Aqui"
Fernanda Montenegro interpreta Eunice Paiva na velhice em “Ainda Estou Aqui” • Divulgação

E já no finzinho, praticamente no epílogo, uma sequência em que Eunice (agora Fernanda Montenegro, a Fernanda-mãe) linkar está com Alzheimer. Nada de pena dela, mais uma vez dignidade.

Eunice aparece na ponta de uma mesa de almoço e, ao fundo, toda a família fala ao mesmo tempo, crianças correm pra lá e pra cá, Eunice ausente, lá no seu canto, despercebida. A câmera se aproxima dela aos poucos, e a mostra interagindo, quase imperceptivelmente com brilhos no olhar, pequenos sorrisos de orgulho e prazer de ter toda a filharada, netos, maridos, agregados, todos juntos num retrato em que ela é a personagem principal. Só a Fernanda-mãe seria capaz de, em tão pouco tempo de tela, dar tanta expressividade a uma personagem com Alzheimer sem deixar a personagem de lado um só segundo. Só ela mesmo!

Aqui tivemos uma enorme injustiça: Fernanda-mãe deveria ser eleita a melhor atriz coadjuvante da temporada. Sem rivais à altura.

Fora esta ressalva, temos muito que comemorar!

*Professor de Cinema da Faap 

“Ainda Estou Aqui”: conheça história que inspirou o filme

 

Este conteúdo foi originalmente publicado em Ainda estamos aqui, e vamos continuar por um bom tempo no site CNN Brasil.

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