“Autopercepção da Alemanha como um país de imigração mudou”

"OUm quarto da população alemã tem histórico de migração, mas dicussão sobre quem pertence ao país voltou à superfície nos últimos dez anos. Para pesquisadora, ideias extremistas vêm se normalizando na sociedade.A imigração foi o tema central da campanha das eleições federais de 2025 na Alemanha, e o resultado inverteu o quebra-cabeça político para privilegiar partidos com projetos restritivos, incluindo o partido conservador União Democrata Crstã (CDU) e a legenda ultradireitista Alternativa para a Alemanha (AfD).

Em entrevista à DW, Sulin Sardoschau, pesquisadora no Centro de Pesquisa Empírica sobre Migração e Integração de Berlim, explica como o tema atravessou uma Alemanha em necessidade de reconstrução no pós-Segunda Guerra Mundial para, hoje, tomar o lugar de debates mais profundos característicos de uma democracia amadurecida.

Para ela, a sociedade alemã há décadas reluta em aceitar uma nova identidade enquanto um país de imigrantes, tal como é o Brasil, e hoje vive um momento histórico deste processo. Enquanto isso, projetos populistas de partidos anti-imigração como o Alternativa para a Alemanha (AfD) vêm influenciando a agenda política doméstica.

DW: De que ponto na História vem a ideia de que a imigração é um problema com o qual a sociedade alemã deve se preocupar?

Sulin Sardoschau: A Alemanha tem um grande histórico de imigração, começando mesmo após a Segunda Guerra Mundial, quando muitas pessoas de língua alemã expulsas [de áreas anexadas pela Polônia e Rússia] foram reassentadas na Alemanha Ocidental. Depois, na década de 1950, a era do milagre econômico, milhões de trabalhadores temporários (“Gastarbeiter” em alemão, que literalmente significa “trabalhador convidado”) foram recrutados para reconstruir a economia. Nos anos 1970, 12% da força de trabalho já era composta por migrantes vindos da Turquia, Itália, Grécia e outros países.

Foi mais tarde, na década de 1990, após a reunificação, o colapso do bloco comunista e a grande migração de refugiados vindos, por exemplo, da ex-Iugoslávia, que o tema se tornou mais político. Houve uma onda de ataques xenófobos em Rostock-Lichtenhagen, e o tema deixou de ser a imigração como uma necessidade econômica. A ideia de que as pessoas deveriam retornar depois de trabalharem deu espaço para: “Na verdade, essas pessoas estão ficando e há mais chegando. Como lidamos com isso política e socialmente?”

Nestas eleições, vimos muitos partidos sugerindo ou afirmando que a imigração descaracteriza a Alemanha. Esta foi a postura política predominante no pós-guerra?

A ideia era dizer que havia escassez de mão de obra no país e que se precisava da força de homens e mulheres. Mesmo com a chegada do milionésimo trabalhador convidado à Alemanha (em 1964), o então ministro do Trabalho, Theodor Blank, disse: “É ótimo que vocês venham para cá porque aprenderão muitas habilidades que levarão para seus países de origem.” Portanto, mesmo naquela época, a concepção de imigração como algo permanente não estava presente.

Na década de 1970, isso mudou quando houve o choque do preço do petróleo, e a Alemanha entrou em recessão, com o aumento do desemprego entre imigrantes e nativos. A escassez levou, é claro, a conflitos. A ideia era que agora, por favor, vocês deveriam voltar, porque não precisamos mais de vocês. Mas é claro que, como (o escritor suíço) Max Frisch disse: pedimos trabalhadores, e nós recebemos pessoas.

Os trabalhadores efetivamente foram embora?

Essas pessoas estavam no país há 10 ou 15 anos. Elas casaram e tiveram filhos aqui. É claro que elas não voltaram. Mas isso não mudou a percepção de que esses trabalhadores temporários não pertenciam realmente à Alemanha, tanto que, na década de 1980, foram concedidos prêmios de milhares de marcos alemães para incentivar as pessoas a voltarem para seus países de origem e reconstruírem suas vidas lá. Mais tarde, isso mudaria lentamente. Nos anos 1990 e com a reforma da legislação em 2000, a cidadania alemã se tornou uma questão de integração, e não de sangue e ancestralidade. Essa foi a primeira onda de compreensão de que essas pessoas não são hóspedes, mas de fato pertencem à sociedade alemã.

O debate se acelerou ainda com a chegada de refugiados em 2015. Portanto, o tópico de migração sempre fez parte da Alemanha, mas a autopercepção da Alemanha como um país de imigração mudou. E junto com isso também surgem conflitos.

A ideia da Alemanha como um país de imigrantes se firmou no governo?

Ainda na década de 1990 (o então chanceler federal) Helmut Kohl disse que a Alemanha não é um país de imigração. Só mais tarde essa percepção mudou e, em 2018, o presidente alemão, Frank-Walter Steinmeier, disse que, de fato, temos de levar em conta nossa história de imigração, que essas pessoas pertencem ao país e que a Alemanha é um país de imigração. Esse é claramente o caso, pois cada vez mais pessoas têm um histórico de migração.

Um quarto da população alemã tem histórico de migração, e isso sem contar a migração na terceira e quartas gerações. O fato de a Alemanha reconhecer seu papel como um país de imigração e de que pessoas de países de maioria muçulmana ou de fé muçulmana também pertencem a esse país é relativamente recente. O debate ao redor disso e de uma espécie de cultura dominante alemã (comumente chamada de “Leitkultur” em alemão) voltou à superfície nos últimos dez anos e se tornou mais quente, com a direita populista clamando este tema para si e tornando-o uma questão contenciosa.

Discursos radicais como o da AfD são, então, fruto do desafio em aceitar esta nova autopercepção?

Eu acredito que o motivo pelo qual a migração se tornou uma questão tão central é que muitas opiniões consideradas extremistas se normalizaram na última década. A imigração sempre foi um ponto de disputa, não apenas na Alemanha, mas também em outros países, e eles tiveram que lidar com novas identidades, o que é sempre doloroso. Mas a versão extrema dessa forma de debate sobre migração, creio eu, remonta a um ponto muito mais profundo. (…) Acho que a migração está carregando muito simbolismo em torno do mesmo tipo de frustração que ocorre em muitas democracias maduras, que é esse descontentamento com um Estado que não é capaz de agir e fornecer as necessidades básicas e a infraestrutura de que a população precisa.

Muitos falam como se a imigração tivesse alcançado hoje um volume sem precedentes. Isso procede?

A Alemanha teve muitas ondas de imigração nos últimos 80 ou 100 anos, eu diria. Os números atuais de solicitantes de asilo (em 2024, foram 235 mil pedidos novos na Alemanha) se comparam aos do início da década de 1990, que chegou a 400.000 solicitantes de asilo por ano. O número de trabalhadores estrangeiros em 1955 era de menos de 100.000 pessoas. Em 1973, era de 2,6 milhões.

Portanto, houve um enorme aumento no número de imigrantes. No entanto, a percepção era muito diferente, e acho que essa sensação de perda de controle está relacionada à frustração quanto à capacidade do Estado. A “crise dos refugiados” já dura 10 anos, mas não há nenhuma melhora sentida na organização, integração e processamento de muitos dos desafios que vêm com ela.

O que mudou de lá para cá?

A prontidão com que os partidos democráticos estão dispostos a empregar esse tipo de narrativa, na esperança de conseguir conter o populismo ao adotar alguns dos mesmos pontos de vista. Porém, muitos cientistas demonstraram que isso está deslocando a janela de Overton (a amplitude de argumentos politicamente aceitáveis para a população em geral) e normalizando essas perspectivas, o que leva ao aumento dos votos para partidos extremistas. Portanto, os partidos democráticos precisam reconsiderar se a estratégia correta é adotar essas visões, torná-las dominantes e apoiar a definição da agenda por parte de partidos populistas, ou se estão dispostos a enfrentar problemas mais profundos.

Mas também vimos a população sair às ruas se expressando pelo direito de imigrar. Elas são novas na sociedade alemã?

A grande maioria das pessoas na Alemanha não apoia pontos de vista radicais, e uma pequena parte delas realmente se envolve em ativismo para combater atitudes xenófobas e lançar luz sobre o assunto. Nem os desafios nem os aspectos positivos que vêm com a imigração e a diversificação da sociedade são novos. Igrejas e organizações da sociedade civil sempre se mobilizaram pelos direitos das minorias, sejam elas judaicas, muçulmanas ou de qualquer tipo. E as pesquisas mostram que as contramanifestações realmente diminuem os ataques xenófobos. As pessoas estão entendendo que este é um momento histórico, e acredito que isso vá aumentar nos próximos anos.

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