Entre o caos e a farmácia, uma odisseia carnavalesca

Era só uma ida à farmácia. Simples. Objetiva. Bastavam poucos minutos e outros tantos passos para ir e voltar. Mas era domingo de Carnaval, e as ruas haviam se transformado em um grande experimento psicanalítico a céu aberto, onde Freud explicaria muita coisa, mas dificilmente justificaria. Mal sabia eu que essa simples caminhada se transformaria em uma epopeia digna de Homero, repleta de perigos, odores e situações que desafiavam as leis da física e a noção de invasão do espaço interpessoal.

Logo na esquina, o primeiro choque de realidade em que, um carro de som tremia como se estivesse sendo eletrocutado por um cabo solto de energia elétrica. Aquele veículo, digno de uma internação compulsória em alguma oficina manicomial exclusiva para meios de transporte que já viram e ouviram de tudo em sua existência, emitia sons que desafiavam todas as leis da harmonia. Em cima dele, uma banda formada por músicos cujas almas desafinadas, destruía impiedosamente o que um dia já foi uma melodia. O vocalista parecia em guerra com a afinação, enquanto o baterista atacava o instrumento como se precisasse esmagar uma barata imaginária num ritmo que não conciliava de jeito nenhum com a guitarra. Como uma catarse sonora, o desajuste das notas, vozes e instrumentos expressavam desejos inconscientes.

Seguir em frente transformou-se em um desafio digno de um reality show de sobrevivência daqueles que a gente torce para que dê tudo certo, ao menos para aqueles que, como eu, optaram por sair de casa. Cada passo exigia estratégia: desviar de latas de cerveja, vodca e refri amassadas, além de garrafas e um rastro pegajoso que tinha 80% de álcool e 20% de puro arrependimento. Em um canto, um grupo de homens fantasiados de dançarinas de cabaré e fadinhas desfilava com perucas fluorescentes e saltos que desafiavam as leis da física além das tradicionais asas. À direita, mulheres vestidas com o mínimo necessário para que a polícia não as levasse presas tentavam decidir se era mais fácil dançar ou evitar uma insolação.

Respirei fundo—erro clássico—e fui atingido por uma nuvem de odores que misturava suor envelhecido, bebidas fermentadas no sol de verão e algo que parecia um churrasco, que deu muito, mas muito errado. Foi quando percebi que meu sapato tinha se transformado em uma obra de arte abstrata, mesclada pelos restos de bebida, pipoca e um chiclete fossilizado, provavelmente datado do século passado e que permaneceu intacto aparentemente, aguardando minha pisada.

A dona da casa, de balde em punho, assistia à cena com uma expressão que misturava indignação e um desejo secreto de testar o instinto de fuga dos infratores. Mas, após alguns segundos de contemplação, ela suspirou profundamente, como quem aceita que, naquele momento, a civilidade havia sido temporariamente suspensa. Resignada, ela virou as costas e voltou para dentro de casa, deixando a horda carnavalesca seguir seu curso ao longo do democrático espaço livre público. Afinal, era Carnaval, e até os muros precisavam aprender a relaxar — pelo menos até a Quarta-Feira de Cinzas.

Antes que eu pudesse me recuperar, quase fui atropelado por um grupo de foliões em estado de hipomania carnavalesca que, impulsionada pela atmosfera de liberdade, música alta, dança e permissividade que o Carnaval proporciona, vestido de banana, gritou: “É Carnaval, meu chapa! Relaxa!” Relaxar? Eu só queria chegar à farmácia e comprar um remédio para a dor de cabeça que, ironicamente, estava sendo causada por todo aquele cenário.

Finalmente, cheguei ao meu destino. Agarrei-me ao balcão como um náufrago pedindo socorro. Na fila do caixa, uma senhora discutia com o atendente porque o estoque de tampões de ouvido havia se esgotado.

— “Como assim acabou? É Carnaval, gente! Vocês não estavam preparados?”
— “Preparados para o quê?”, pensei. “Para o fim dos tempos? Para o apocalipse Zumbi?”

Era o princípio de realidade confrontando o princípio do prazer: ela queria silêncio, mas o Carnaval insistia em ser ouvido. Com meu tão desejado comprimido em mãos, respirei aliviado—mais um erro clássico—e me preparei para o caminho de volta. Decidi seguir por uma rua alternativa, mas logo me arrependi. Outro carro de som, outra banda desconhecida, outra tentativa de homicídio musical.

E então, o auge do experimento social se materializa com um sujeito de tanga de oncinha e peruca loira me abraçou e disse, com um sorriso etílico:

— “No Carnaval, somos todos um só!”

O que Freud chamaria de perda da individualidade, eu chamaria de um pesadelo em alta definição. Sobrevivi até chegar em minha porta. O bloco ainda crescia, os foliões agora em maior número ainda dançavam, gritavam, urravam e o cheiro de cerveja velha e suor fermentado no sol continuava firme e forte impregnando o ar. Voltei para casa exausto, mas com a certeza de que o Carnaval é, acima de tudo, uma grande sessão de terapia coletiva. E eu? Bem, eu só queria meu remédio para a dor de cabeça.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.