[Coluna Tropiconomia] Carnaval, a força subestimada do Brasil

""NoFesta demonstra capacidade única de realizar megaeventos sem sacrificar a anarquia e a criatividade. Folia, além de extremamente bem-sucedida financeiramente, representa como poucas no mundo uma cultura popular diversa.Fernanda Torres disse uma coisa maravilhosa certa vez: “O Brasil é uma ilha continental. O Brasil tem esse complexo de vira-lata e, ao mesmo tempo, tem pena do mundo não saber do que a gente sabe.”

É assim que eu me sinto sempre que vejo o Carnaval no Brasil. Há 30 anos eu o passo – quase sempre – em Salvador. E cada vez me surpreendo e me fascino de novo com essa mistura de alegria de viver, anarquia e organização profissional. E sempre tenho dificuldades para explicar esse fenômeno a alguém que não o conhece – e acho uma pena, como diz a Fernanda Torres, que não se possa mesmo explicar isso a ninguém.

Porque o Carnaval, esse megaevento que dura mais de dez dias, demonstra uma habilidade do Brasil que é subestimada, e que nunca aparece na lista de fatores positivos do país.

Não é como se um dos países mais inseguros e desiguais em renda de repente se unisse em harmonia. No Carnaval da Bahia há camarotes que chegam a cobrar mais de R$ 4 mil por dia. Por alguns trocados e a alguns metros de distância dali, porém, é possível ver a noite inteira, “da pipoca”, os mesmos trios elétricos, blocos e afoxés desfilarem.

Sempre me admira que a organização se profissionalize mais a cada ano: numa cidade com mais de 2,5 milhões de habitantes, mais de 11 milhões teriam curtido o Carnaval em Salvador, segundo contagem feita nos acessos aos desfiles; destes, 3,5 milhões eram turistas que participaram da folia por vários dias. Dar conta dessa “invasão” é um tremendo desafio logístico. E isso, numa cidade com imensos contrastes sociais e altas taxas de criminalidade.

A título de comparação: estive em Berlim no Ano-Novo. Tenho minhas dúvidas se a capital alemã daria conta de um megaevento de mais de dez dias com um público de cerca de 14 milhões, sendo 5 milhões turistas.

O que é fascinante é como as autoridades conseguem envolver toda a economia informal no circuito oficial. Da vendedora de cerveja na ponta da rua ao técnico de som em cima do trio, do gari à costureira que ajusta os turbantes dos Filhos de Gandhy (ou customiza, por muito dinheiro, os abadás dos camarotes): quase todo mundo está cadastrado e registrado.

Alegria de viver alucinante dentro de ordem rigorosa

O Carnaval é uma tremenda fonte de riqueza para a economia local. Isso fica mais evidente quando a festa cala – por exemplo, quando a covid-19 cancelou dois anos de Carnaval. É quando o dinheiro da folia faz falta a todo mundo: aos empresários dos camarotes e trios tanto quanto aos músicos e à maioria dos trabalhadores envolvidos no processo – cada trio ou camarote depende de alguns milhares deles.

No meio dos foliões há não só diversos policiais, mas também fiscais que monitoram o cumprimento das regras. Isso soa banal, mas não é: profissionais que cuidam para que as mulheres não sejam atacadas contra a vontade, que controlam a data de validade de alimentos ou que monitoram a intensidade do som emitido pelos trios.

Mas o que mais me fascina é essa incrível alegria de viver que o Carnaval demonstra: cada um se expressa no meio dessa massa humana como bem deseja. E isso com uma alegria que eu raramente vejo na Alemanha.

Também é difícil explicar a indescritível diversidade da cultura carnavalesca: dos blocos afros como o Olodum e o Ilê Aiyê, passando pelos afoxés como os Filhos de Gandhy e estrelas dos trios como Ivete, Daniela ou Saulo, até os pioneiros do axé como Luiz Caldas e as estrelas do pagode como Márcio Victor do Psirico ou Igor Kannário – todos artistas que talvez em São Paulo ou no Rio a maioria não conheça de cara, alguns já com décadas de sucesso na estrada, capazes de empolgar multidões.

O Carnaval é a festa de uma cultura popular tão diversa, exibida num ritmo tão alucinante, que deixa a gente sem fôlego. Mas temo que a esta altura da coluna eu já tenha perdido o restante dos leitores que me seguiram até aqui – exceto os que também estiveram no Carnaval de Salvador.

__________________________________

Há mais de 30 anos o jornalista Alexander Busch é correspondente de América do Sul. Ele trabalha para o Handelsblatt e o jornal Neue Zürcher Zeitung. Nascido em 1963, cresceu na Venezuela e estudou economia e política em Colônia e em Buenos Aires. Busch vive e trabalha em Salvador. É autor de vários livros sobre o Brasil.

O texto reflete a opinião pessoal do autor, não necessariamente da DW.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.