O que se sabe sobre a pior violência na Síria desde a queda de Assad

Uma operação militar na Síria contra apoiadores remanescentes do antigo regime de Assad terminou, tendo desencadeado algumas das piores violências vistas no país em anos.

Centenas de pessoas foram mortas na repressão e nos combates entre as forças de segurança e os apoiadores do ex-presidente Bashar al-Assad desde quinta-feira (6).

O que começou como confrontos entre grupos armados leais a Assad e forças leais ao novo regime sírio rapidamente se transformou em assassinatos comunitários, com um monitor de guerra afirmando que pelo menos 779 pessoas foram mortas.

Depoimentos de testemunhas e vídeos verificados pela CNN mostraram partidários do governo realizando execuções em campo, com alguns falando em “purificar” o país. Confira o que se sabe sobre o episódio:

 

 

Por que a violência ocorreu novamente?

A violência ocorreu onde o antigo governante Assad, um líder alauíta, obteve a maior parte de seu apoio.

Os alauítas são um grupo muçulmano xiita minoritário que vive predominantemente na Síria de maioria sunita. A família Assad, integrantes do grupo, governou a Síria por mais de meio século até que Bashar foi deposto em dezembro por combatentes islâmicos sunitas que buscavam remodelar a ordem política e sectária do país.

Ao longo do governo de Assad, o grupo alauíta tornou-se cada vez mais ligado, aos olhos de seus oponentes, às atrocidades cometidas pelo regime durante a guerra civil síria.

O presidente interino sírio Ahmad al-Sharaa, que já liderou o grupo ligado à Al Qaeda que derrubou Assad no final do ano passado, prometeu anteriormente igualdade política e representação aos grupos das diversas populações étnicas e religiosas da Síria.


Presidente interino da Síria, Ahmed al-Sharaa, no palácio presidencial de Damasco • 10/03/2025 REUTERS/Khalil Ashawi

A fragilidade da nova Síria foi, no entanto, revelada pelos eventos dos últimos dias. Na quinta-feira (6), a agência de notícias estatal síria SANA relatou confrontos mortais entre as forças do governo sírio e grupos pró-Assad na província costeira de Latakia.

A SANA relatou que “remanescentes de grupos de milícias de Assad” atacaram postos de controle e patrulhas do governo, matando e ferindo muitas pessoas.

No fim de semana, a operação contra os leais a Assad se transformou em assassinatos comunitários. Homens armados ligados ao novo regime realizaram execuções em campo e falaram em purificar o país, de acordo com testemunhas e vídeos verificados pela CNN.

A Rede Síria para os Direitos Humanos (SNHR), sediada no Reino Unido, disse nesta segunda-feira (10) que, entre os 779 mortos, “grupos armados não estatais” leais a Assad foram responsáveis ​​pelas mortes de 383 pessoas, incluindo 172 integrantes das forças de segurança do Estado e 211 civis.

As forças governamentais e grupos afiliados foram responsáveis ​​pelas mortes de pelo menos 396 pessoas, incluindo “civis e militantes desarmados”, de acordo com a SNHR.

Como o novo regime sírio reagiu?

Sharaa culpou a violência aos remanescentes das forças de Assad, alegando que eles estavam tentando incitar conflitos sectários.

No domingo (9), ele disse que seu governo responsabilizaria qualquer pessoa envolvida nas mortes de civis durante os combates pesados. Sharaa havia descrito anteriormente a violência como “desafios esperados”.


Forças sírias avançam em direção à fumaça crescente em Latakia, em 7 de março. • Karam al-Masri/Reuters via CNN Newsource

O governo interino da Síria prometeu formar um comitê independente para “investigar e apurar os fatos” e enviar um relatório à Presidência em 30 dias.

O comitê “descobrirá as razões, circunstâncias e condições que levaram a esses eventos”, disse uma declaração da Presidência interina da Síria, acrescentando que “investigará as violações cometidas contra civis e identificará os responsáveis”.

Ele também “investigará ataques a instituições públicas, forças de segurança e militares, e determinará a responsabilização”. Os considerados culpados serão encaminhados ao judiciário, acrescentou.

Em uma entrevista à Reuters nesta segunda-feira (10), Sharaa disse que “a Síria é um Estado de direito”.

“A lei seguirá seu curso para todos”, ele afirmou à Reuters de Damasco.

Sharaa culpou o surto de violência em uma antiga unidade militar leal ao irmão de Assad e uma potência estrangeira não especificada, de acordo com a agência. O presidente também disse que, em resposta, “muitas partes entraram na costa síria e muitas violações ocorreram”, informou a Reuters.

“Tornou-se uma oportunidade de vingança”, acrescentou Sharaa.

Como a comunidade internacional reagiu?

Os assassinatos na Síria ameaçam minar os esforços de Sharaa para acabar com o isolamento do país e reconstruir os laços diplomáticos que poderiam aliviar as sanções impostas desde o governo de Assad.

O ex-jihadista que virou presidente disse repetidamente à mídia ocidental que ele prevê uma Síria inclusiva e prometeu evitar assassinatos por vingança e violência sectária.

Vários países condenaram os conflitos nos termos mais fortes.

Os Estados Unidos denunciaram no domingo o que disseram ser “terroristas islâmicos radicais, incluindo jihadistas estrangeiros, que assassinaram pessoas no oeste da Síria nos últimos dias”.


Pessoas participam de um cortejo fúnebre em 8 de março em al-Janoudiya, uma cidade a oeste de Idlib, para quatro membros das forças de segurança sírias mortos nos confrontos. • Omar Albam/AP via CNN Newsource

O Secretário de Estado Marco Rubio disse que os EUA apoiam as minorias religiosas e étnicas na Síria e que “as autoridades interinas devem responsabilizar os perpetradores desses massacres”.

A União Europeia, que no mês passado removeu algumas restrições à Síria para “apoiar uma transição política inclusiva”, também condenou a violência recente, dizendo que “os civis devem ser protegidos em todas as circunstâncias, em total respeito ao direito internacional humanitário”.

O bloco também pediu “a todos os atores externos para respeitarem totalmente a soberania, a unidade e a integridade territorial da Síria”.

Qual o papel dos estrangeiros nisso?

Após a guerra civil da Síria há mais de uma década, atores regionais e potências mundiais — incluindo Arábia Saudita, Irã, EUA, Rússia e Turquia — disputaram influência, intensificando o conflito para o que alguns observadores descreveram como uma “guerra por procuração”.

O Estado Islâmico também conseguiu se firmar no país antes de sofrer golpes significativos.

A Síria tem sido o lar de vários combatentes estrangeiros ao longo dos anos. Não está claro quantos permanecem.

Vários vídeos apareceram nas redes sociais mostrando comboios de homens armados em veículos antes da violência, com alguns falando em dialetos árabes estrangeiros.

Conforme a violência mais recente surgiu, várias potências estrangeiras também trocaram acusações.

A Turquia, que obteve ganhos significativos na Síria após a queda de Assad, havia alertado o Irã contra tentativas de desestabilizar a Síria em comentários que mais tarde levaram Teerã a convocar o embaixador da Turquia, informou a Reuters, citando a TV estatal.

Falando em uma entrevista coletiva no domingo em Amã, o ministro das Relações Exteriores turco Hakan Fidan disse que houve um “esforço para descarrilar a política de semanas do governo sírio de não reagir a provocações”, de acordo com a agência de notícias estatal Anadolu.

“Estamos, é claro, comprometidos em apoiar totalmente o governo recém-formado na Síria e apoiar todos os seus esforços para estabilizar o país”, ele afirmou.

O que acontece depois?

É improvável que os efeitos do recente derramamento de sangue desapareçam, disseram especialistas, especialmente porque os gatilhos da violência estão profundamente enraizados no passado da Síria.

A menos que as questões centrais sejam abordadas pelo governo – incluindo participação política e condições de vida desiguais em todo o país – a Síria pode não se recuperar dos conflitos sectários em andamento, de acordo com analistas.


Integrantes das forças de segurança leais ao governo interino sírio posam para uma foto na costa do Mar Mediterrâneo em Latakia, em 9 de março. • Omar Haj Kadour/AFP via Getty Images via CNN Newsource

“A Síria passou por mais de 13 anos de conflito horrível e debilitante que criou o tipo de fissuras sociais, raiva, fúria, sede de vingança entre muitos que simplesmente não vão desaparecer realisticamente por um longo tempo”, disse Charles Lister, pesquisador sênior e chefe da Iniciativa Síria no Instituto do Oriente Médio em Washington, DC, à CNN.

Ele acrecentou que a insurgência pró-Assad também dificilmente desaparecerá completamente.

O futuro da Síria em relação aos países ocidentais também pode depender da capacidade do novo governo de lidar com eventos recentes e garantir a responsabilização, disseram outros especialistas.

Na entrevista com a Reuters, Sharaa reconheceu que a violência dos últimos dias “impactará” a tentativa de unir a Síria, mas prometeu “retificar a situação o máximo que pudermos”.

Haid Haid, um colunista sírio e consultor do programa Oriente Médio e Norte da África no think tank Chatham House em Londres, disse que muitos dos próximos passos da Síria dependerão de Sharaa responsabilizar todos os envolvidos na violência.

“Lidar com as causas raiz do problema, pelo menos algumas delas, será crucial”, afirmou Haid, incluindo garantir que a comunidade alauíta não se sinta marginalizada.

Alguns moradores alauitas que fugiram das áreas costeiras da Síria em meio aos confrontos disseram à CNN nesta segunda-feira que estão com muito medo de retornar para suas casas, apesar do anúncio do governo de que a operação militar acabou.

Ainda não se sabe como os países ocidentais percebem o período de transição da Síria após a violência. Lister disse que, embora os eventos recentes possam exacerbar o ceticismo dos EUA sobre o novo governo da Síria, os países europeus estão ansiosos para ver o regime interino estabilizar o país.

“Dos europeus, estamos ouvindo uma linguagem muito diferente, obviamente críticas e preocupações sobre assassinatos de civis, mas também reforçando a ideia de que o governo interino precisa se estabilizar”, ele afirmou.

Atores regionais também demonstraram apoio ao levantamento de sanções, apesar da violência.

No domingo, Turquia, Jordânia, Iraque e Líbano realizaram uma reunião com autoridades sírias em Amã, onde pediram o levantamento de sanções à Síria “para aumentar suas capacidades de reconstruir o país e atender às necessidades do povo sírio”, de acordo com uma declaração conjunta.

Haid acrescentou que, para seguir adiante, a Síria não deve isolar “os incidentes de segurança do contexto mais amplo, frágil e em piora”.

“Abordar o que está acontecendo apenas por meio de medidas de segurança não será suficiente, mesmo que consigam impedir esses ataques em um futuro próximo”, ele afirmou. “As causas raízes permanecerão lá”.

Este conteúdo foi originalmente publicado em O que se sabe sobre a pior violência na Síria desde a queda de Assad no site CNN Brasil.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.