[Coluna] Mulheres negras e a luta pela dignidade no trabalho

""BoaAs mulheres negras sempre batalharam pela sua honradez e integridade, apesar de um país que insistia em lhes reservar apenas o indigno. E aqui vos trago dois exemplos para sustentar meu ponto.Entre os anos de 2003 e 2023, 70% das mulheres que foram resgatadas de condições análogas à escravidão são mulheres negras. Um percentual feio, mas nem um pouco alarmante. Afinal, venhamos e convenhamos, a história do Brasil foi construída para que as mulheres negras estivessem em nenhum lugar, para que suas vidas só importassem assim, nas estatísticas que reforçam o quão desigual, racista e misógina é a sociedade brasileira.

Então, ainda que dados como esse sejam revoltantes, eles de alguma forma são azeitados pela maneira como o Brasil decidiu tratar suas mulheres negras que, vale lembrar, compõem o maior percentual da população brasileira na atualidade. Um silêncio sistêmico, uma mordaça que foi desenhada na figura da negra Anastácia e que, se dependesse de muita gente, continuaria na boca das mulheres negras.

Mas, para nossa sorte, a história não foi exatamente assim. Ainda que números e estatísticas tenham sido constantemente utilizados para reduzir a experiência de mulheres negras, boa parte dos avanços que conhecemos e dos quais usufruímos foram construídos com o suor dessas mulheres e seu trabalho árduo, tanto no período de vigência da escravidão, como no pós-abolição. Dito em alto e bom som: as mulheres negras sempre lutaram pela sua honradez e integridade, apesar de e contra um país que insistia em lhes reservar apenas o indigno. E aqui vos trago dois exemplos para sustentar meu ponto.

Esperança Garcia

Piauí, século 18. A capitania não estava diretamente vinculada à economia de exportação que ordenava o sentido da colonização portuguesa no Brasil. Mas, nem por isso, era um território que desconhecia a escravidão. Pois bem: foi ali na capitania do Piauí, no dia 06 de setembro de 1770, que Esperança Garcia (1751-?) escreveu uma carta ao governador da capitania denunciando os maus-tratos que sofria e reivindicando melhores condições de vida e de trabalho para ela e outras pessoas escravizadas.

Isso mesmo. Num período em que a escolarização era um privilégio de muito poucos (a maior parte dos moradores do Brasil colônia era iletrada), uma mulher escravizada não só escreveu de próprio punho uma carta para a maior autoridade local, como o fez para denunciar seu novo proprietário que, além de ser um péssimo cristão, era profundamente violento com seus escravizados, especialmente mulheres e crianças.

A importância dessa carta escrita por Esperança Garcia tem muitas camadas. Por um lado, nos ajuda a desmistificar a ideia de que a população escravizada era pacata e subserviente aos mandos e desmandos de seus proprietários. A resistência sempre existiu, das mais diferentes formas.

Em segundo lugar, o documento em si é de um valor inestimável, já que foi escrito em primeira pessoa por uma mulher que estava na pior condição social daquele período. Em terceiro, sua carta, redigida com clareza e firmeza, tornou-se um marco na história por direitos, fazendo com que, em 2017, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) do Piauí reconhecesse esse documento como uma petição, escrita por aquela que foi condecorada como a primeira advogada do estado. Isso mesmo: uma das primeiras advogadas do Brasil foi uma mulher negra, que na condição de escravizada lutou pelo que entendia ser a dignidade que merecia.

Laudelina Campos Melo

O segundo exemplo é um pouco mais recente, de um período em que a escravidão já havia sido abolida, mas que a dignidade continuava sendo apenas um horizonte distante para as mulheres negras. Pois bem: no começo do século 20, Laudelina Campos Melo (1904-1991) começou a escrever seu nome nos anais da história.

Nascida em Poços de Caldas, Minas Gerais, desde jovem se envolveu em movimentos sociais e percebeu as dificuldades enfrentadas pelas empregadas domésticas, uma profissão historicamente marcada pela exploração e pela informalidade. Em 1936, fundou a primeira associação de trabalhadoras domésticas no Brasil, em Santos, São Paulo, buscando garantir melhores condições de trabalho, acesso a direitos básicos e o reconhecimento da categoria.

Sua militância esteve fortemente ligada à luta contra o racismo e à defesa da valorização da mulher negra, evidenciando como a desigualdade de classe e raça impactava as trabalhadoras domésticas.

Ao longo de sua vida, Laudelina continuou a atuar ativamente na organização das trabalhadoras domésticas, ampliando a mobilização e pressionando o governo por mudanças legais. Seu esforço foi fundamental para a criação de sindicatos da categoria e para a conquista de direitos trabalhistas formais, que só começaram a ser reconhecidos na legislação brasileira a partir da Constituição de 1988, sendo oficialmente equiparada aos direitos trabalhistas das demais categorias depois da promulgação da PEC das Domésticas, em 2013.

Então, se hoje podemos olhar com horror a permanência de mulheres negras em condições análogas à escravidão, é também porque fomos formados por outras mulheres negras, que não se curvaram frente à luta por dignidade em seus trabalhos, mesmo que elas não tivessem o privilégio de escolher com o que trabalhar.

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Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020) e Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (Todavia, 2022), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.

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