Fim da Voz da América ameaça democracia e liberdade no mundo

Presidente Donald Trump cortou fundos para emissora criada para conter propaganda nazista. Para especialistas, medida é antidemocrática e coloca em risco interesses geopolíticos.O governo de Donald Trump coloca em risco os meios de comunicação financiados pelos Estados Unidos que miram audiências fora do país. Um drástico plano de corte de gastos públicos eliminou o financiamento para estes veículos, incluindo a tradicional Voz da América (Voice of America, em inglês). A medida foi criticada por especialistas ao redor do mundo devido a seus prováveis efeitos sobre a liberdade de imprensa, incluindo na América Latina.

A Voz da América foi criada durante a Segunda Guerra Mundial, em contraposição à propaganda nazista na Alemanha, e serviria, mais tarde, também para difundir valores americanos no contexto da Guerra Fria. Hoje, a emissora transmite conteúdo jornalístico em 49 idiomas e alcança mais de 360 milhões de pessoas no mundo.

Para a América Latina, a Voz da América tem páginas nos idiomas espanhol e crioulo. Já a sua produção em português mira os países lusófonos na África, numa página que publica também conteúdos sobre o Brasil.

Segundo o governo americano, a emissora tem orçamento anual de 267,5 milhões de dólares, sendo a sua missão atuar como fonte de informação confiável, representar os Estados Unidos e apresentar as políticas do país e as discussões ao redor delas de forma equilibrada. A gestão republicana considera que veículos como este sejam hoje “desnecessários”.

“Medida antidemocrática”

Em suas redes sociais, o diretor da Voz da América, Michael Abramowitz, relatou que mais de 1,3 mil jornalistas, produtores e outros — ou seja, “virtualmente toda a equipe” da emissora — haviam sido dispensados dos seus postos de trabalho. “Estou profundamente triste com o fato de que, pela primeira vez em 83 anos, a famosa Voz da América está sendo silenciada”, escreveu.

Segundo ouvintes citados pela CNN, algumas das estações de rádio locais da Voz da América interromperam a programação de notícias e passaram a transmitir música pouco após o anúncio da nova medida.

“Parece-me uma decisão míope e lamentável do ponto de vista informativo”, avalia Fidel Cano Correa, diretor do El Espectador, jornal de circulação nacional da Colômbia. “O mundo requer mais vozes, e não menos. A Voz da América, embora pudesse ter uma essência propagandística, mostrou ao longo dos anos enorme profissionalismo.”

Para especialistas da área, os veículos públicos de informação exercem papel importante no combate à desinformação, que impõe um dos maiores desafios políticos e informacionais atualmente ao redor do mundo. Além disso, servem como alternativa às eventuais limitações de cadeias privadas de comunicação por oferecer conteúdo que não está atrelado a interesses comerciais.

“Sem dúvida, esta é uma medida antidemocrática”, afirma Manfredo Marroquín, fundador da Ação Cidadã, braço da Transparência Internacional na Guatemala.

O diretor-geral da DW, Peter Limbourg, também criticou o corte. “Não há um grande compromisso com a liberdade de imprensa por parte do governo dos EUA e do próprio presidente”, alertou.

Déficit de informação na América Latina

A Federação Internacional de Jornalistas, que é a maior organização de jornalistas a nível mundial, também se pronunciou criticamente. “A perda de empregos na imprensa sempre tem um impacto direto sobre os direitos à informação e à liberdade de expressão”, afirmou a organização em nota. “E ainda mais se essa situação for incentivada por um dos governos mais poderosos do planeta.”

Os possíveis efeitos para a América Latina, na avaliação de observadores ouvidos pela DW, incluem a deterioração das relações com os EUA e o aprofundamento do déficit de informação na região.

“A América Latina tem públicos ávidos para conhecer o que realmente acontece no mundo”, diz Norberto Beladrich, professor da Universidade de Salvador, cuja sede principal fica em Buenos Aires, na Argentina. “Em detrimento desses públicos, as informações que chegam são muitas vezes inadequadas, parciais ou unilaterais, ou até mesmo todas essas coisas ao mesmo tempo.”

Para Marroquín, o corte de gastos do governo Trump atinge ainda mais profundamente o jornalismo na América Latina, em vista da suspensão da cooperação da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (Usaid).

“Meios independentes digitais, que costumam ser os mais críticos, se viram severamente afetados pelos cortes orçamentários nos Estados Unidos, minando o esforço de longa data para incentivar o jornalismo independente como um contrapeso eficaz às tentativas de instalar regimes autoritários na região”, adicionou.

Geopolítica em jogo

O Global Times, veículo controlado pela China com produção em inglês, celebrou a decisão do governo americano. Em editorial, acusou a Voz da América de ter um “histórico terrível” por reportar sobre violações de direitos humanos na região de Xinjiang, disputas no Mar do Sul da China, a luta por independência de Taiwan e Hong Kong e “fabricar a chamada narrativa do vírus chinês.”
“Quase toda falsidade maliciosa sobre a China tem as impressões digitais da Voz da América”, escreveu o jornal.

A Voz da América é mantida pela Agência dos Estados Unidos para Mídia Global (USAGM, na sigla em inglês), que também é responsável por rádios para Europa, Ásia e Oriente Médio. Também foi cortado o financiamento para estas rádios, cujas audiências incluem Rússia, Ucrânia, China e Coreia do Norte.

A Rádio Europa Livre/Rádio Liberdade disse ter aberto um processo na Justiça para bloquear a decisão, enquanto observadores argumentam que a ameaça à Voz da América coloca em risco os interesses geopolíticos dos EUA ao abrir vácuos a serem preenchidos por outras potências globais, como a Rússia e a China.

“Este não é o momento de ceder terreno à propaganda e à censura dos adversários dos Estados Unidos. Acreditamos que a lei está do nosso lado e que a comemoração de nossa morte por déspotas de todo o mundo é prematura”, afirmou em nota Stephen Capus, CEO da Rádio Europa Livre/Rádio Liberdade.

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