Quase um ano após enchentes que deixaram rastro de destruição no estado, 27 vítimas seguem desaparecidas. Buscas são consideradas cada vez mais difíceis, prolongando sofrimento de parentes.”Ficamos com um vazio no coração não sabendo onde eles estão e não podendo dar um destino certo a eles”. É com essa frase que a assistente administrativa Luana Dutra Marquete, 24 anos, define o sentimento dos últimos meses.
Moradora de Muçum, no Rio Grande de Sul, ela e o marido Eduardo Brino, de 25 anos, perderam, em uma única tarde, seis familiares nas enchentes que atingiram o estado entre o final de abril e o início de maio de 2024. Os avós Elirio e Erica Brino, de 78 anos, seguem desaparecidos até hoje.
“Precisamos seguir nossas vidas, mas seguimos vivendo o luto daqueles dias. Tem momentos em que a gente para, fica pensando em tudo o que aconteceu e as lágrimas escorrem”, diz Luana.
Elirio e Erica viviam com o filho, Dorly, de 58 anos, e com a mulher de Dorly, Janice, de 49, em uma pequena propriedade rural em Roca Sales, no Vale do Taquari, onde criavam bois e porcos. No local também moravam Maria Eduarda, de 20 anos, e Gabriela, de 9 anos, filhas de Dorly e Janice e netas dos idosos. Eduardo, irmão mais velho das meninas, vive com Luana em Muçum (RS), município vizinho.
A tragédia que devastou a família Brino aconteceu no dia 30 de abril de 2024. As intensas chuvas dos dias anteriores fizeram com que um morro próximo desmoronasse, cobrindo tudo que existia nas imediações.
“Por volta das 15 horas, chovia muito e foi quando tudo aconteceu. Vizinhos que estavam junto ao Dorly e Janice minutos antes, apenas ouviram o barulho e saíram correndo, e tudo o que se via era uma fumaça branca e a visibilidade era zero. Eu e o Eduardo, estávamos em Muçum. Ele havia saído de casa para poder ajudar as pessoas a carregar as coisas por causa da enchente, quando um compadre veio em nossa casa e deu a notícia. A ficha não caiu na hora”, recorda Luana.
“Sabíamos o transtorno que a enchente causava às pessoas, porém um deslizamento de terra nunca pensamos que isso pudesse acontecer na propriedade. Tanto que eu e Eduardo estávamos construindo nossa casa no morro onde ocorreu o deslizamento”, acrescenta.
Toda a família que estava na propriedade foi atingida pelo deslizamento. Os corpos dos pais e das irmãs de Eduardo foram encontrados dias após o ocorrido. Já os avós nunca foram localizados.
Dados da Defesa Civil do Rio Grande do Sul apontam que 27 pessoas seguem desaparecidas após um ano da tragédia. Os desaparecidos são de 15 diferentes cidades. Oficialmente, a Defesa Civil do Rio Grande do Sul contabilizou 183 mortes no desastre. Ao todo, 478 municípios gaúchos foram atingidos por inundações, quedas de barreiras e deslizamentos de terra.
As buscas
Com o passar dos meses a busca pelos desaparecidos se torna um desafio cada vez maior.
O acúmulo de entulho e as camadas de sedimentos já endurecidas dificultam os trabalhos. Segundo o Corpo de Bombeiros, em algumas áreas, os sedimentos resultantes dos deslizamentos chegam a 12 metros de altura.
“Não há meios para rastrear ou tecnologia que nos permita localizar corpos em meio a esses sedimentos ou até mesmo submersos nos rios”, diz o Ricardo Mattei, coronel do Corpo de Bombeiros, subcomandante geral da corporação no estado.
O passar do tempo, também dificulta o trabalho dos cães farejadores, já que o odor se dissipou. E a extensão da área atingida pela enchente é outro desafio que impacta diretamente na localização dos desaparecidos.
“A enchente atingiu quatro calhas de rios que cortam nosso estado, fazendo com que a área atingida fosse de mais de 300 km de extensão. A possibilidade de encontrar essas vítimas, infelizmente, é muito pequena”, acrescenta Mattei.
Além das dificuldades em encontrar as vítimas desaparecidas, a identificação delas também não é considerada fácil, já que o grande volume de água resultante da enchente pode fazer com que o corpo seja localizado em outro município.
Esse foi o caso de Josiani Carolini da Silva, uma das últimas vítimas encontradas pela corporação, em julho de 2024. A mulher constava como desaparecida da cidade de Lajeado, no entanto seu corpo foi encontrado em Cruzeiro do Sul, cidade vizinha.
“Sempre que encontramos ossos ou fragmentos, eles são encaminhados para o Instituto Geral de Perícia (IGP) para a identificação através de DNA. Porém, os cemitérios das cidades também foram atingidos pela enchente e muitas vezes, o que encontramos são de pessoas que já haviam falecido antes da tragédia”, detalha Mattei.
Luto sem ritualização
O luto por pessoas desaparecidas é um processo marcado pela incerteza. Sem um corpo ou uma confirmação definitiva, familiares vivem em um estado de não encerramento emocional de um ciclo, o que, segundo os especialistas, pode dificultar a aceitação da perda e prolongar todo o sofrimento.
“Dentro da teoria do luto, a gente fala de um termo que se chama luto ambíguo. Nesse tipo de luto, ao mesmo tempo que a pessoa sabe que o ente tenha morrido na enchente porque ele desapareceu, ela ainda pode nutrir uma esperança, porque essa perda não foi ritualizada. Então quando não tem um corpo, a situação fica em aberto”, explica Natália Aguilar, psicóloga com especializações em Psicologia Perinatal e Parental, Perdas e Luto.
Essa ritualização da morte e de despedida, segundo os profissionais, é importante porque traz concretude para o luto e ajuda a organizar internamente essa questão da morte para que a pessoa possa ir para uma outra etapa, que é de fato vivenciar o luto em si.
“A forma como cada pessoa vai lidar com essa falta é que vai fazer com que a elaboração do processo chegue ao fim. O luto, ele é eterno, mas o processo para elaboração, ressignificação dessa perda e reestruturação psíquica da pessoa tem fim”, explica o psicólogo Paulo Torres, vice-coordenador do grupo Amigos Solidários na Dor do Luto.
Ainda segundo os profissionais, enfrentar o luto em situações de tragédias, como a ocorrida no Rio Grande do Sul, é ainda mais difícil porque além da dor da perda do ente querido, a comoção de ver cidades destruídas também impacta o estado emocional dessas famílias.
“Essas pessoas enfrentam diversas perdas de uma única vez. Tem a perda do familiar, da moradia, financeira, das memórias e da rotina. Essas pessoas tiveram perdas nas esferas mais profundas e é necessária muita resiliência e apoio emocional para retomar a vida”, acrescenta Aguilar.
Declaração de “Morte Presumida”
Uma das maneiras de oficializar a morte de um ente querido em caso de desaparecimento é através da presunção de morte.
A legislação brasileira prevê, no artigo 7º do Código Civil, uma decisão judicial que declara a morte de uma pessoa, mesmo que não haja provas concretas, ou seja, quando o corpo não é encontrado.
Assim, familiares que tiverem desaparecido numa catástrofe como as enchentes do Rio Grande do Sul podem fazer essa solicitação judicial.
O especialista em direito processual civil, o advogado Anderson de Carvalho Sales, explica que, como não há um corpo para que um médico possa assinar o atestado de óbito, as famílias das vítimas devem entrar na Justiça com um pedido de morte presumida.
A entrada do processo tem de ser feita por meio de advogado particular ou da Defensoria Pública do estado.
“A declaração só pode ser dada quando esgotadas todas as buscas, sendo que a sentença fixa uma data provável de falecimento, como o dia em que a casa da família foi levada pelas águas. A família precisa desse documento para obter a certidão de óbito e seguir com outros trâmites como pedir pensão por morte, se for o caso, e começar o inventário”, explica.