Francisco: o papa que denunciou a “cultura machista”

Em tempos de guinada conservadora, era um alívio e tanto ter um papa que dizia que as mulheres deviam ser tratadas com igualdade e falava sobre a importância da educação das meninas”Nós estamos acostumados a essa cultura machista, a ver a mulher, não digo como o cachorrinho ou o gato de casa, mas como um ser humano de segunda categoria. E não vamos esquecer. Quem leva o mundo adiante são as mulheres.” Essa reflexão não foi feita por uma mulher feminista, mas pelo papa Francisco, que morreu na segunda-feira (21/04) aos 88 anos.

Conhecido pelo seu comprometimento com causas ligadas aos direitos humanos e apoio a grupos marginalizados, o papa foi também um aliado das causas das mulheres – dentro do limite do que um chefe da conservadora Igreja Católica pode ser, que fique claro.

“Não acredito que ouvi um papa denunciar machismo”, comentou uma jovem no TikTok que compartilhou o discurso de Francisco sobre “cultura machista”, feito em novembro do ano passado. Estudei a vida toda em escola católica e, assim como a jovem, também não esperava ouvir isso de um papa.

Francisco chegou a ser chamado de “papa feminista” por alguns. Não chego a tanto, mas com certeza ele era um homem ligado aos tempos atuais, que ouviu as mulheres e virou um aliado das nossas causas em muitos momentos.

Ele foi o papa que mais deu espaço para mulheres dentro da Igreja Católica, uma instituição que, segundo ele próprio, tinha “uma mentalidade machista” que precisava ser superada. Na ocasião, ele falava sobre o papel das freiras, que em muitos casos “servem” os homens na Igreja. “Muitas vezes reclamamos que não há freiras suficientes em cargos de responsabilidade, nas dioceses, na cúria e nas universidades. É verdade – precisamos superar uma mentalidade clerical e machista”. E acrescentou: “A missão das irmãs é servir aos mais desfavorecidos, e não ser empregadas de ninguém.”

Ele conseguiu dar todo o espaço que queria para as mulheres dentro da Igreja? Acredito que não. Mas ele foi o primeiro papa a nomear uma mulher para o comando de um dicastério (similar a um ministério) do Vaticano, e sob seu comando as mulheres ocuparam mais cargos de poder do que com seus antecessores.

Pode até parecer pouco, mas estamos falando de um papa da Igreja Católica, onde mulheres muitas vezes são vistas como “boas esposas” que “deviam cuidar do lar”, da família e por aí vai.

Em tempos de guinada para o conservadorismo, foi um alívio e tanto ter um papa que dizia que mulheres deviam ser tratadas com igualdade e falava sobre a importância da educação das meninas.

“No mundo, onde as mulheres ainda sofrem tanta violência, desigualdade, injustiça e maus-tratos, e isso é escandaloso (…) existe uma grave forma de discriminação, que está precisamente ligada à educação das mulheres”, disse.

Um papa denunciando que nós, mulheres, somos historicamente vítimas de violência e desigualdade foi um avanço enorme. Algo que nós, mais velhas, nunca esperamos ver na vida.

Acolhimento a LGBTQs

É claro que a Igreja Católica continua sendo uma instituição machista e conservadora, na qual os padres precisam ser homens e os gays são considerados pecadores. Mas Francisco (acredito que dentro do possível em uma instituição tão conservadora como essa) avançou em todas essas causas.

Alguns meses depois de assumir o cargo, ao ser perguntado sobre o que achava de católicos que eram gays, ele respondeu: “Se uma pessoa é gay, busca a Deus e tem boa vontade, quem sou eu para julgar?” Em 2023, ele disse em entrevista à agência de notícias Associated Press que “ser gay não é crime” e que as leis que criminalizam a homossexualidade são “injustas”.

Ser homossexual deixou de ser pecado durante os anos em que Francisco foi papa? Não, mas, repito novamente, estamos falando da conservadora Igreja Católica.

Francisco, ao ter uma postura mais acolhedora com a população LBTQIA+, as mulheres e outros grupos marginalizados, virou ídolo até para quem não segue nenhuma religião (caso desta colunista). Vai fazer muita falta, especialmente em um momento em que o mundo vira para a extrema direita e abraça valores conservadores que muitos de nós acreditavam já estar superados.

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Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo “02 Neurônio”. Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.

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