Mundo dos criadores digitais não está ileso das disparidades de gênero do mercado de trabalho. Mulheres estão desproporcionalmente representadas nas faixas de renda mais baixa, e ganham cerca de 20% menos que os homens.As mulheres são a grande maioria dos influenciadores digitais no Brasil, um mercado que, apesar de relativamente novo, reflete a antiga desigualdade de gênero da sociedade: os maiores rendimentos estão com maior frequência nas mãos dos homens.
Uma pesquisa sobre criadores de conteúdo divulgada em 10 de abril pela plataforma de marketing de influência Wake Creators concluiu que há mais de 14 milhões de criadores de conteúdo no país, dos quais 87% são mulheres.
O estudo considera criadores de conteúdo quem produz e publica conteúdo regularmente em plataformas digitais como Instagram, TikTok e YouTube com o objetivo de engajar uma audiência.
Apesar da dominância numérica das mulheres, os rendimentos mensais mais elevados desse mercado estão nas mãos dos homens, enquanto elas concentram os rendimentos mais baixos, segundo uma outra pesquisa realizada pela agência Brunch em parceria com a consultoria YOUPIX.
Esse estudo, publicado no final do ano passado, traça um recorte de gênero na chamada economia dos criadores, formada por criadores de conteúdo digital e suas interações comerciais.
Entre os homens criadores de conteúdo, 33,7% ganham de R$ 5 mil e R$ 10 mil, enquanto entre as mulheres, 27,6% estão na mesma faixa. A disparidade se amplia nas rendas superiores, de R$ 50 mil a R$ 100 mil e acima de R$ 100 mil. Entre os homens, 3,2% e 2,1% estão nessas faixas, respectivamente, enquanto entre as mulheres o percentual não chega a 1%.
O inverso ocorre nas faixas de renda mais baixas. Entre as mulheres, 21,5% ganham até R$ 2 mil por mês, quase o dobro do que entre os homens, com 12,6%. Na faixa de R$ 2 mil a R$ 5 mil, estão 31,4% das mulheres criadoras de conteúdo, e 28,4% dos homens.
“Quando olhamos para um recorte histórico desta pesquisa, realizada desde 2019, ele nunca foi positivo para a mulher”, afirma Ana Paula Passarelli, fundadora da agência Brunch e especialista em marketing de influência e economia dos criadores. “Atualmente, a mulher ganha, em média, 20% a menos que um criador de conteúdo homem.”
Reflexo de desigualdade estrutural
Atuando no mercado das influenciadoras há cerca de 15 anos, Passarelli explica que o principal fator que justifica as desigualdades no mundo digital são questões estruturais da sociedade. As disparidades de gênero, as expectativas de desempenho e até mesmo os estereótipos que envolvem o público feminino são, de forma sutil ou explícita, reproduzidos no mundo digital.
“São reflexos do que acontece já na sociedade. A pesquisa só mapeou uma coisa que já acontece no Brasil”, afirma.
Segundo o mais recente Relatório de Transparência Salarial e Igualdade Salarial, divulgado em abril pelos ministérios do Trabalho e Emprego e das Mulheres, as mulheres brasileiras ganham em média 20,9% menos do que os homens, mesmo com o aumento da participação feminina no mercado de trabalho. A média salarial dos homens é de R$ 4.745,53, enquanto a das mulheres é de R$ 3.755,01.
Assim como na sociedade, o cenário no mercado de influenciadores é ainda mais crítico quando o recorte inclui a questão racial. No mesmo estudo da Brunch e YOUPIX, pessoas negras aparecem em menor número nas faixas superiores de rendimento, como de R$ 20 mil a R$ 50 mil, na qual os criadores negros são exceções.
Essa desigualdade é sentida de maneira direta por influenciadoras negras, como é o caso de Anne Caroline, modelo e criadora de conteúdo de moda e beleza, que relata como seu rendimento muitas vezes é afetado por essa questão.
“Sinto que quando você é uma influenciadora negra, você tem que estar sempre à frente, até na hora de cobrar uma certa quantia de uma marca”, diz ela, que publica conteúdos de estilo de vida e dicas de beleza em seu Instagram e TikTok.
“Às vezes a gente não tem o privilégio de cobrar pelo que o nosso trabalho realmente custa”, afirma. “Muitas vezes, preciso jogar o valor um pouquinho para baixo, porque aquela marca futuramente pode me trazer alguns benefícios e não temos o luxo de só recusar um trabalho.”
Moda e beleza versus setor financeiro
Assim como Anne Caroline, grande parte das mulheres criadoras de conteúdo ocupa o nicho de moda e beleza. Esse é outro fator que ajuda a explicar a desigualdade salarial, já que esses segmentos possuem margens de lucro menores, impactando diretamente nos valores pagos aos influenciadores, diz Passarelli.
“O lucro das marcas costuma ser reduzido, logo a marca vai pagar menos para essa influenciadora”, explica a fundadora da Brunch.
Por outro lado, influenciadores homens costumam trabalhar em segmentos com margens de lucratividade maiores, como é o caso do setor financeiro.
“O mercado financeiro tem margens muito diferentes, eles conseguem ter uma jornada de conteúdo completamente diferente. E, dentro desse nicho, a gente tem muito mais homens fazendo conteúdo”, diz Passarelli.
A advogada Ana Paula Braga, especializada em direitos das mulheres, aponta outro fator que também explica a disparidade salarial: os homens ainda são maioria nos cargos de gestão nas empresas que costumam contratar criadoras de conteúdo.
“A falta de diversidade nesses cargos costuma menorizar a adoção de políticas de equidade e inclusão”, afirma Braga. “Por exemplo, a maior parte das agências de marketing e publicidade são dirigidas por homens.”
Mulheres como pioneiras no mercado
Para compreender melhor essas dinâmicas de gênero que influenciam os rendimentos dessas mulheres, é importante também analisar a origem do mercado digital no Brasil, diz Issaaf Karhawi, professora da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) e pesquisadora em comunicação digital.
“Tudo começou com as blogueiras que falavam de moda e beleza nos anos 2000”, afirma Issaaf, autora do livro De Blogueira a Influenciadora. “Foram elas que estruturaram o modelo de negócio atual, baseado em publicidade com marcas e parcerias comerciais.”
A partir da atuação pioneira dessas blogueiras, surgiram outros processos de influência, com a entrada de homens no mercado, que se concentraram em nichos como política e games. A pesquisadora observa que os vieses de gênero foram se solidificando, e a associação inicial com os universos da moda e da beleza contribuiu para a formação de estigmas problemáticos que afetam as influenciadoras até hoje.
“Foi criado o estigma da blogueira de moda e beleza como algo fútil, que não seria um trabalho sério, mas uma diversão, o que leva muitas mulheres a não serem levadas a sério”, explica Karhawi. “Um streamer, por exemplo, que compartilha vídeos jogando online, é visto como alguém que transformou um hobby em uma prática profissional. Já uma mulher que transforma um hobby em uma profissão é estigmatizada.”
Estigmas e a luta pela credibilidade
A farmacêutica brasileira Marina Cristofani vivencia essa realidade no seu cotidiano como influenciadora. Com mais de 970 mil seguidores no TikTok atualmente, ela passa para seus seguidores dicas de produtos de beleza a partir de seu repertório e conhecimento como farmacêutica especializada em desenvolvimento de cosméticos.
Mas mesmo sendo uma profissional especializada na área, Cristofani relata à DW como sua credibilidade e profissionalismo são questionados nos comentários de seus vídeos.
“No fim do ano passado, fui muito perseguida, principalmente por uma pessoa em específico que era um médico homem”, afirmou. “Ele deu um jeito de descredibilizar tudo que eu estava falando e sei que era porque eu era mulher, pois depois vi esse outro profissional fazendo isso somente com outras mulheres.”
A situação não foi um caso isolado, já que diversas vezes as procedência das suas indicações e produtos eram colocadas em dúvida pelo público. “Não sei como é a questão salarial, pois como eu era farmacêutica, para mim foi mais fácil conseguir uma credibilidade maior com as marcas, mas acho que exista sim um uma credibilidade maior quando se é homem.”
Caminhos para equidade
Para a advogada Ana Paula Braga, um fator importante para diminuir a desigualdade salarial no mercado de influenciadores seria a regulamentação da atividade, que ajudaria a trazer parâmetros que evitem a discriminação em razão de gênero, raça e outros marcadores.
No Brasil, por exemplo, há diversas leis que protegem, ao menos na teoria, as mulheres das disparidades, como é o caso da Lei da Igualdade Salarial, promulgada em 2023, que traz medidas concretas para obrigar as empresas a corrigirem disparidades.
“Essa lei obriga as empresas a enviarem relatórios semestrais ao governo com suas respectivas folhas de pagamento por cargo e gênero”, afirma Braga. “Quando é evidenciada a disparidade salarial, a mulher pode ingressar na Justiça do Trabalho cobrando a equiparação salarial e até mesmo uma indenização pela discriminação sofrida”.
No entanto, ela explica que, como o mercado de influenciadores não é regulamentado, as disposições da Lei de Igualdade Salarial não se aplicam a esse setor, deixando as influenciadoras mais vulneráveis a esse tipo de discriminação.
Segundo a advogada, outro fator importante seria ter mais transparência sobre essa realidade para ter dimensão do problema. “A partir disso, conseguimos desenvolver políticas para corrigir essas disparidades”, diz.