Justiça reconhece crimes da ditadura militar contra povo indígena e ordena demarcação e recuperação ambiental do antigo território em Minas Gerais. Forçados ao exílio, Krenak também reivindicam compensações.Primeiro, os indígenas Krenak viram policiais militares ocuparem suas terras, no Vale do Rio Doce, no estado de Minas Gerais. Depois, vários foram presos, torturados e mortos. Forçados a migrar para uma região distante, só conseguiram retornar anos depois – e encontraram seu território degradado. Por essas violências cometidas durante a ditadura militar (1964-1985), o Brasil terá que pedir desculpas e promover reparações ao povo indígena.
Em 8 de abril, o Tribunal Regional Federal da 6ª Região (TRF-6) confirmou uma sentença de primeira instância que condemou o Estado brasileiro por danos coletivos contra os Krenak. A ação civil pública havia sido apresentada pelo Ministério Público Federal (MPF) em Minas Gerais. Agora, a União, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e o estado de Minas Gerais deverão realizar uma cerimônia pública pedindo desculpas pelas violações cometidas contra os Krenak.
Mas a decisão vai além do simbólico. A Funai terá que demarcar a Terra Indígena Krenak de Sete Salões, em Resplendor (MG). O Tribunal determinou ainda a reparação ambiental da região e ações para preservação da língua e cultura Krenak, que foram proibidas naquele período.
“As pessoas falam da Ditadura Militar como se fosse algo do passado. Mas as violações cometidas contra os indígenas persistem até hoje”, avaliou o jornalista e ativista pelos direitos humanos indígenas Douglas Krenak, de 42 anos. Para ele, a decisão traz esperança na Justiça, embora os réus ainda possam recorrer.
A decisão também traz esperança para a cacica Lidiane Damasceno Krenak, 44 anos, da Terra Indígena Vanuíre, em Arco Íris (SP). Seus antepassados não conseguiram retornar à região do Vale do Rio Doce em Minas Gerais após serem expulsos. Agora, o MPF em São Paulo pede medidas de reparação e compensação.
“Essa ação é um reconhecimento de que nossos antepassados não saíram daquele local, mas foram expulsos. É um fortalecimento das futuras gerações. A gente não deixou de lutar pelos ideais e pelo reconhecimento cultural do nosso povo”, avaliou a cacica.
A militarização do território
A decisão do TRF-6 é fundamental para o povo Krenak, que vai receber as reparações, avaliou o procurador da República Edmundo Antonio Dias. “Mas também é importante para todos os povos originários do nosso país e para toda a sociedade brasileira. É um reconhecimento de que essas graves violações de direitos humanos foram cometidas contra todos os povos indígenas.”
Antonio Dias foi responsável pelo inquérito civil que resultou na ação ajuizada em 2015. Um ano antes, um relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV) comprovou, de forma oficial, uma série de violações do regime militar contra os povos originários. A estimativa é de que, entre 1946 e 1988, pelo menos 8.350 indígenas morreram por ação ou omissão do Estado.
Além das informações da CNV, a petição inicial do MPF se baseou em três episódios emblemáticos da ditadura em Minas Gerais. O primeiro foi a criação, em 1969, do Reformatório Agrícola Krenak ou, na visão dos indígenas, do Presídio Krenak.
O propósito oficial era confinar e “recuperar” indígenas criminosos ou com “comportamentos desviantes”. Mas, na prática, o reformatório funcionou como um “campo de concentração”, como definiu o sertanista Antônio Cotrim Soares, aprisionando aqueles que resistiam à invasão do seu território ou que não aceitavam as ordens dos militares. Há relatos de mortes e torturas na prisão, que encarcerou centenas de indígenas de ao menos 23 etnias.
O segundo episódio foi a criação, ainda em 1969, da Guarda Rural Indígena (GRIN), responsável por monitorar os povos indígenas da região. O desfile de formação da primeira turma mostrou os métodos da guarda: um indígena foi carregado em um pau de arara, na frente das autoridades. O registro do episódio, feito por um documentarista teuto-brasileiro Jesco von Puttkamer (1919-94), só foi divulgado publicamente em 2012, transformando-se rapidamente em uma das imagens icônicas da ditadura.
O terceiro episódio foi o deslocamento forçado dos indígenas. Como suas terras às margens do Rio Doce estavam sendo ocupadas por fazendeiros, gerando conflitos, o Estado organizou e transferiu, em 1972, todos os Krenak e os confinados no reformatório para Carmésia (MG), na Fazenda Guarani.
“Alguns, Bastianinha, Velho Jacó e Joaquim Grande, foram levados algemados e apanhando, tomando tapas na cara, para Itabira, de onde foram levados em um pau de arara para a Fazenda Guarani”, descreveram os indígenas na ação.
Sofrimento e retorno
Na Fazenda Guarani, os indígenas passaram a viver em uma região mais fria e sem acesso a um rio, o que os impedia de pescar – uma de suas principais fontes de subsistência. Além disso, perderam a conexão com o rio Doce, com o qual tinham uma relação espiritual.
A ação do MPF destacou o sofrimento mental do Velho Jacó, uma liderança política e espiritual entre os Krenak. Após ser preso no reformatório e ter sido levado algemado à Fazenda Guarani, o indígena sofreu um possível quadro grave de depressão, apontou um laudo usado no processo.
“Lá na Fazenda Guarani não tinha rio, não tinha nada. Meu pai contava que na Fazenda Guarani era difícil a noite que o vô não chorava. […] Quando meu vô começou a perceber que seria difícil a volta, ele começou a adoecer mais”, contou em depoimento Douglas Krenak, neto de Jacó.
Quando os indígenas começaram a retornar, em 1980, Jacó já havia morrido. Os que conseguiram chegar à região do Rio Doce encontraram suas terras devastadas e ocupadas por fazendeiros com títulos de propriedade emitidos pelo estado de Minas Gerais. Posteriormente, a Funai conseguiu na Justiça anular os documentos dos imóveis rurais localizados nas terras Krenak.
Até hoje a terra indígena, localizada em Resplendor (MG), não foi demarcada. A decisão de primeira instância da Justiça Federal, de 2021, já havia determinado a demarcação em seis meses, mas a Funai conseguiu postergar a medida. Com a confirmação da decisão pelo tribunal, a fundação terá seis meses para finalizar a demarcação, além de, junto com o Estado de Minas Gerais, fazer uma recuperação ambiental.
“Esse território, que é do nosso povo, foi violentamente explorado, sem qualquer tipo de fiscalização. É importantíssimo que esses territórios indígenas sejam regularizados e demarcados. Porque o povo indígena tem isso na sua essência: preservar os recursos naturais, que são importantíssimos para a humanidade”, avaliou Douglas Krenak.
Segundo o indígena, a mineração e as monoculturas, como eucalipto e café, causam grandes impactos ambientais na terra indígena. Além disso, em 2015, o rio Doce foi tomado pelos rejeitos da barragem de Fundão, que rompeu em Mariana, causando mais degradação ambiental.
“Há muitos anos o nosso povo vem lutando por medidas de reparação a todas as violações que sofremos”, afirmou Douglas Krenak. “Essa decisão da justiça de reconhecer todas essas violações é crucial para nós. Faz com que a gente tenha esperança sobre a renovação da justiça.”
Os exilados de São Paulo
Os Krenak foram forçados a diversos deslocamentos na sua história. Na década de 1930, durante o Estado Novo de Getúlio Vargas, alguns foram levados para Aldeia Vanuíre, em Arco-Íris. Outros, após deixarem a Fazenda Guarani, se dispersaram, e também acabaram na mesma região.
No dia 2 de abril, o MPF em São Paulo entrou com uma Ação Civil Pública pedindo compensação e indenização dos danos causados desde a ditadura aos indígenas do povo Krenak que habitam a aldeia Vanuíre. São réus a União, a Funai, os estados de São Paulo e Minas Gerais e o município de Arco-Íris.
O MPF pediu, entre outras coisas, a ampliação do território e a renovação da estrutura agrícola. Também solicitou o pagamento de indenizações por danos morais coletivos e individuais que totalizam R$ 14,4 milhões.
A cacica e professora Lidiane Damasceno Krenak contou que a avó e a mãe viveram nas terras de Minas Gerais antes de serem forçadas a se deslocar para Vanuíre. Uma das histórias mais chocantes vividas por elas aconteceu quando os militares teriam entrado na cabana da avó para raptar uma de suas filhas para fazê-la de “escrava” ou “escrava sexual”.
“Os homens da família se reuniram, foram atrás e conseguiram trazer a menina de volta. Só que os militares foram tão covardes que esperaram todo mundo dormir, cercaram a casa da minha avó e, com todo mundo dentro, botaram fogo”. Os familiares conseguiram sair, mas fugiram para as montanhas por causa do medo que ficaram.
Justiça de transição
As duas ações envolvendo os Krenak podem ser vistas como parte da justiça de transição. O conceito jurídico se refere à apuração de crimes ocorridos no passado com o objetivo de promover a reconciliação, garantir os direitos das vítimas, fortalecer a democracia e prevenir a repetição das violações.
A Comissão de Anistia do Ministério dos Direitos Humanos já havia formalizado a anistia e feito um pedido de desculpas formal aos indígenas Krenak, após um pedido feito pelo procurador da República Edmundo Antonio Dias. Foi o primeiro povo a conseguir esta reparação coletiva, seguido pelo Guarani-Kaiowá, em Mato Grosso do Sul. Na ocasião, de joelhos, a presidente da comissão, Eneá de Stutz e Almeida, pediu perdão aos indígenas.
Mas as compensações ainda precisam ser feitas. “Mais do que aprofundar a justiça de transição para os povos indígenas, a decisão do TRF6 busca aplicar a justiça de transição”, avaliou o procurador, salientando o desafio que o Brasil tem pela frente, já que são mais de 300 etnias – a Comissão Nacional da Verdade ouviu apenas dez.
“É uma nova história que tem começado a ser escrita para preencher essas lacunas da historiografia oficial. É uma história que tem que ser contada pelos próprios povos indígenas, pelos invisibilizados da história, pelos silenciados e despojados dos seus direitos”, disse Edmundo Antonio Dias.