Como os sapatos do papa Francisco o mantiveram perto de suas origens

O jovem Jorge Mario Bergoglio sempre comprou seus sapatos na mesma loja de bairro. Após uma trajetória à frente da igreja católica e sua morte, aos 88 anos, os calçados extraordinariamente comuns que ganharam o mundo levam orgulho ao seu antigo bairro de Buenos Aires — e ao seu sapateiro.

Em forte contraste com seu antecessor, Bento XVI, Francisco calçava sapatos básicos pretos durante suas aparições públicas nos 12 anos de papado. A simplicidade do traje comunicava o perfil do argentino, pouco afeito a luxo, cerimônia ou acúmulo de riqueza — o que reforçou sua conexão com fiéis de diferentes recortes sociais.

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Um sapateiro de terceira geração

Os homens da família Muglia foram os primeiros sapateiros do bairro de Flores, na zona oeste da capital argentina. O comércio da família, chamado “Muglia Sapatos”, abriu as portas em 1945, poucos anos após o nascimento do pontífice, em 1936.

Sem concorrência na vizinhança, o jovem Bergoglio comprou seu primeiro par de sapatos na casa dos 20 anos de idade, das mãos de Juan José Muglia. Na ocasião, ele servia como padre jesuíta na basílica de San José de Flores, naquele mesmo quarteirão.

“Meu pai e meu avô contavam histórias de como o padre Bergoglio vinha da igreja para comprar os sapatos que usava o tempo todo. Seus favoritos eram um modelo simples, mas que pode durar por anos“, disse o neto de Juan José à agência de notícias Associated Press, após a morte do papa.

O futuro chega

Décadas depois daquela primeira venda, as prateleiras da Muglia Sapatos exibem modelos mais recentes, de couro fino e coloridos. Mas grande parte do mostruário permanece o mesmo, o que inclui as paredes com painéis de madeira de pinho, as prateleiras do chão ao teto e os mocassins de couro preto com solas antiderrapantes e aderentes — talvez mais conhecidos como “sapatos de Francisco”.

Ao longo dos anos, “padres de todas as basílicas da cidade e até de Roma vinham para comprá-los“, afirmou Muglia. Os pares são comercializados por US$ 170 (cerca de R$ 967, pela cotação atual), valor muito superior ao que era pago por Bergoglio décadas antes.

Como os sapatos do papa Francisco o mantiveram perto de suas origens

‘Muglia Sapatos’, em Buenos Aires, onde Francisco comprava seus calçados

Nos pés do papa

Em vez de adotar os típicos sapatos papais — de veludo vermelho ou seda –, no entanto, Francisco preservou as raízes de Flores e seguiu fiel aos calçados pretos, básicos e com sola ortopédica. Na trajetória, poucos se perguntavam sobre a marca usada pelo pontífice.

Isso mudou na segunda-feira, 21, quando o papa sofreu um AVC (Acidente Vascular Cerebral) e morreu, aos 88 anos, desencadeando um frenesi de interesse sobre seu passado. Em todo o mundo, ele passou a ser identificado com a redução da pompa do cargo, tornando a liderança da igreja católica mais acessível aos fiéis — o que é representado também pelos trajes.

À medida em que a notícia sobre seus calçados originais se espalhou e jornalistas locais inundaram o bairro, Muglia disse que clientes curiosos o bombardearam com pedidos. Ele colocou um retrato emoldurado de Francisco em destaque em sua vitrine. “Pessoas chegavam de todos os lugares”, contou o comerciante.

Um bairro de luto

Em Flores, a dor pela morte do papa é mais pessoal. Os moradores o recordam como alguém que, como padre, defendia os mais pobres da cidade e compartilhava bens e alimentos com velhos amigos ou desconhecidos.

Na quadra da Muglia Sapatos, o vendedor Antonio Plastina lembra que ele e Francisco “conversavam informalmente, como quaisquer dois argentinos, sobre política e futebol”. Já como arcebispo e cardeal, o religioso ainda dirigia do centro de Buenos Aires até Flores todos os domingos, antes da missa.

Embora a multidão que foi ao bairro ao saber da morte de Francisco tenha se reduzido, eles deixaram uma profusão de buquês e bilhetes escritos à mão para o falecido pontífice nas janelas com grades de ferro da Membrillar 531, a modesta casa onde ele cresceu como o mais velho de cinco irmãos.

“Minha visão está indo embora, mas minha memória é longa”, disse Alicia Gigante, 91, vizinha e amiga da família de Francisco. “Vou me lembrar dele por muito tempo, sempre de sua gentileza, seu sorriso e daquela saudação, quando você tocava a campainha e ele vinha, sempre disposto a abençoar“.

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