No Dia do Trabalhador, lembremos: negros são heróis do país

"ManuelTrabalhadores negros, escravizados e nascidos no Brasil, ocuparam funções variadas e essenciais para a construção do país. E, na virada do século 19 para o 20, protagonizaram o início do movimento sindical.No ano de 1918, Manuel Querino, um intelectual negro brasileiro, publicou um ensaio chamado O colono preto como fator da civilização brasileira. Querino nasceu livre em meados do século 19 no recôncavo da Bahia e, ao contrário do que acontecia com a maior parte dos meninos negros daquele período, teve acesso à educação formal.

Além disso, ou junto a isso, tornou-se um dos mais importantes abolicionistas da Bahia, e um sindicalista de grande atuação na organização dos trabalhadores baianos, além de artista e político. Depois de se aposentar na vida pública, Querino passou a se dedicar a uma série de estudos, grande parte deles voltado para a cultura negra, as artes e a culinária baiana, e em 1918 publicou o artigo citado.

A tese central do ensaio era relativamente simples: Querino defendia que os negros, escravizados e nascidos no Brasil, eram os heróis do trabalho no país. Para comprovar seu ponto, fez uma varredura na história brasileira, demonstrando uma série de saberes que as populações africanas trouxeram com elas, mesmo na condição da escravidão, e lembrou que esses trabalhadores forçados foram os responsáveis pela construção material do Brasil (em todas as áreas que se possa imaginar) e que, literalmente, toda e qualquer riqueza amealhada até a abolição da escravidão havia sido construída com o suor desses homens e mulheres.

O ensaio tem passagens interessantíssimas e vale a pena ser lido na íntegra (por se encontrar no domínio público, está disponível de forma gratuita). Mas o que me interessa aqui é o fato de que Querino estava “nadando contra a corrente”, propondo uma outra forma de entender não só a história do Brasil, como o lugar que a população negra ocupava nessa história.

Artigo publicado durante política de “embranquecimento”

É preciso dizer que, em 1918, as elites politicas, econômicas e intelectuais brasileiras estavam aplicando uma política que tinha como objetivo principal embranquecer o Brasil. É isso mesmo: por meio de uma política muito bem desenhada, a imigração europeia tinha como objetivo aumentar o número de trabalhadores, mas também viabilizar o embranquecimento real da população brasileira, por meio da relação desses imigrantes brancos e europeus com as mulheres negras e mestiças do país.

Junto com a política de imigração, essa mesma elite fomentou uma ideia perversa que defendia que o trabalhador branco estaria melhor preparado para o mercado de trabalho, tanto nas cidades como nas zonas agrícolas, o que por sua vez distanciava a experiência negra do trabalho livre. Como se apenas as pessoas brancas estivessem preparadas para a nova lógica de trabalho que se organizava no Brasil no começo do século 20.

Entre a publicação do ensaio de Querino e os dias atuais, diversas mudanças aconteceram na história do trabalho brasileiro. A organização sindical dos trabalhadores (negros e brancos) foi constante e responsável por uma série de conquistas, como a Consolidação das Leis do Trabalho, conjunto de normas que regula as relações de trabalho no Brasil, criada em 1943.

A CLT, como é conhecida, garante direitos fundamentais aos trabalhadores, como salário mínimo, férias remuneradas, 13º salário e jornada de trabalho limitada. Sua importância está em proteger o trabalhador contra abusos e assegurar condições dignas de emprego. Além disso, a CLT contribui para a justiça social ao equilibrar as relações entre empregadores e empregados.

Uma conquista e tanto, que está sempre em perigo. Recentemente, uma criança negra foi alvo de racismo em uma escola particular após ser apelidada de “CLT” por colegas, em tom pejorativo, por expressar o desejo de trabalhar com carteira assinada no futuro. Além disso, foi discriminada por ser cotista, o que evidencia a reprodução de preconceitos sociais e raciais dentro de ambientes supostamente elitizados. O caso gerou repercussão e indignação, e é um convite para pensar como no Brasil ainda há uma lógica de afastar a população negra de toda e qualquer positividade relativa ao mundo do trabalho.

Negros ativos na organização sindical

Por isso, neste dia 1º de maio, Dia do Trabalhador, é fundamental lembrar que sim, os trabalhadores negros foram heróis do Brasil. Mesmo durante a escravidão, além do trabalho árduo no campo, escravizados negros exerceram ofícios altamente qualificados – como os carpinteiros e pedreiros que ergueram igrejas, sobrados e infraestruturas urbanas no período colonial, especialmente em cidades como Salvador, Recife e Ouro Preto. Em Salvador, esses trabalhadores negros chegaram a organizar uma greve em 1857 que abalou a cidade.

Após a abolição, a população negra se organizou para lutar por direitos e dignidade no trabalho. Um exemplo marcante é o Sindicato dos Estivadores e Trabalhadores em Estiva de Minérios do Rio de Janeiro, fundado em 1903, considerado o primeiro sindicato do Brasil. Originalmente conhecido como Companhia dos Homens Pretos, essa organização não apenas lutava por melhores condições de trabalho no porto, mas também promovia atividades culturais, como a fundação do rancho carnavalesco Recreio das Flores e da escola de samba Império Serrano.

Outro exemplo é o Clube Beneficente dos Homens Pretos e as irmandades negras católicas, que promoviam auxílio mútuo e acesso à educação. Vale ainda destacar a figura emblemática de Minervino de Oliveira, operário negro e dirigente sindical que, nos anos 20, destacou-se como líder do Bloco Operário e Camponês, sendo um dos primeiros negros a ocupar cargo político no país.

Por isso, é fundamental sublinhar que, mesmo que haja uma insistência de dizer o contrário, a trajetória do trabalho negro no Brasil está intrinsecamente ligada à luta formal dos trabalhadores, pois foi por meio da resistência, da organização coletiva e da busca por dignidade que a população negra ajudou a moldar os pilares do movimento sindical e das conquistas trabalhistas brasileiras.

Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020) e Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (Todavia, 2022), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.

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