Em entrevista, Nobel de Química Demis Hassabis sugeriu que em breve a inteligência artificial vai acelerar o desenvolvimento de medicamentos e até as curas. Especialistas examinam a afirmativa polêmica.Dentro de apenas dez anos, o Prêmio Nobel de Química Demis Hassabis pretende curar todas as doenças com ajuda da inteligência artificial (IA) – pelo menos é o que se tem lido na internet. O cofundador e diretor executivo da Google DeepMind, especializada em IA, foi entrevistado sobre vários aspectos dessa tecnologia no programa 60 Minutes, da emissora americana CBS News.
Juntamente com o colega John M. Jumper, inglês de 48 anos desenvolveu na DeepMind o modelo de IA AlphaFold2, capaz de prever as estruturas de praticamente todos os 200 milhões de proteínas atualmente conhecidas. Essas substâncias desempenham uma série de funções biológicas, e distúrbios em sua produção, estrutura ou função podem resultar em patologias. A descoberta valeu à dupla o prêmio de química em 2024.
Na entrevista à 60 Minutes, Hassabis especulava que no futuro a IA será capaz de abreviar em semanas ou até meses o desenvolvimento de medicamentos. E completou: “E acho que um dia talvez vamos poder curar todas as doenças com a ajuda da IA.”
O entrevistador Scott Pelley inquiriu: “O fim de todas as doenças?” Isso está ao alcance da mão, confirmou Hassabis: “Talvez até mesmo dentro da próxima década, não vejo por que não.”
Estruturas moleculares reveladoras
Por vezes é possível estimar a função de uma determinada proteína a partir de sua estrutura tridimensional, porém “ainda não sabemos isso em relação à maioria das proteínas do corpo humano”, explica a bioquímica e informática Katharina Zweig, diretora do Algorithm Accountability Lab da Universidade Técnica de Kaiserslautern-Landau, na Alemanha.
A alteração da estrutura proteica é causa de determinadas enfermidades, e “então é possível desenvolver um remédio para impedir esse processo”. Antes, era preciso toda uma tese de doutorado, exigindo de três a cinco anos, para identificar uma única estrutura molecular, calculá-la e modelá-la. Nesse sentido, “a IA de Hassabis é, de fato, uma revolução”, confirma Zweig.
Florian Geissler, pesquisador-chefe do Instituto Fraunhofer de Sistemas Cognitivos (IKS), lembra que normalmente as causas de doenças não são redutíveis a um único elemento, “mas há muitos exemplos em que as proteínas representam um papel importante”. Assim, “nos próximos anos a IA vai nos permitir coisas que hoje sequer podemos imaginar”.
Apesar disso, Katharina Zweig assegura que ainda não será possível curar todas as doenças dentro de dez anos, pois não se estabeleceu uma correspondência absoluta entre as muitas proteínas e certas doenças: “Também há mutações com estruturas tridimensionais anormais. Estatisticamente pode parecer que sejam a causa de sintomas patológicos, mas na verdade elas são inofensivas.”
E mesmo estando definido qual estrutura proteica resulta em qual moléstia, é necessário um longo processo até um medicamento entrar no mercado: “É preciso se testar em estudos clínicos, que exigem um número suficiente de pacientes, autorizações. Por isso acho que a coisa não vai, nem de longe, ser tão rápida assim.”
Usos atuais da inteligência artificial na medicina
No diagnóstico baseado em imagens de tomografia computadorizada, a IA reconhece muito mais rapidamente a presença de alterações patológicas, explica Florian Geissler. A técnica também ajuda no caso de efeitos colaterais inesperados numa combinação de medicamentos, possibilitando otimizar os métodos de tratamento.
A inteligência artificial tem ainda o potencial de reduzir a carga sobre o sistema de saúde, “por exemplo resumindo automaticamente as conversas com os pacientes e preparando relatórios estruturados para as caixas de saúde”, diz o pesquisador. “Isso poupa tempo precioso do sistema de saúde. Aqui a IA terá um papel decisivo.”
A bioquímica Zweig ressalva, porém, que, apesar da assistência por IA, a cura de doenças exige grandes recursos financeiros: “Por isso os medicamentos continuarão só sendo desenvolvidos onde haja pacientes com dinheiro suficiente para depois pagá-los.”
Diagnósticos de valor limitado
Outra questão é que, em geral, raramente é possível pronunciar um diagnóstico com base em regras definidas, acrescenta Katharina Zweig. Um desses casos é a diabetes, em que “há uma taxa limite e métodos de medição claros”.
A maioria dos outros diagnósticos, contudo, exige muita capacidade de julgamento e experiência, e “não conheço nenhum sistema de IA, hoje, que os torne tão confiáveis ao ponto de substituir os médicos e médicas”. Florian Geissler parte igualmente do princípio que, nos próximos tempos, a decisão sobre o tratamento permanecerá de responsabilidade humana, “sobretudo por motivos éticos e legais”.
E possivelmente também pelo fato de, no momento, os sistemas de IA ainda serem uma espécie de “caixa preta”, “onde se dá um input e se recebe uma resposta, mas sem saber cem por cento como a decisão foi tomada”, compara o pesquisador do Instituto Fraunhofer.
Katharina Zweig descreve assim: “Não temos como ver a máquina aprendendo, nem como chega a seu diagnóstico. Portanto tampouco podemos concluir se ela parte de critérios que nós, enquanto seres humanos, também estabeleceríamos.”