Como o regime Putin instrumentaliza a vitória soviética sobre os nazistas

"ParadaDurante décadas, muitos russos associaram o “Dia da Vitória” com os sacrifícios e perdas durante a 2° Guerra. Mas o regime de Putin vem instrumentalizando data para tentar legimitar seu poder e consolidar sua ideologiaBebês em uniformes militares, crianças pequenas em tanques de guerra feitos de papelão, alunos de escolas primárias marchando em sincronia. As comemorações do 80º aniversário da vitória da União Soviética sobre a Alemanha nazista foram além do grande desfile militar na Praça Vermelha de Moscou desta sexta-feira (09/05).

Os recém-nascidos de uma maternidade na cidade de Kemerovo, no sudoeste da Sibéria, foram vestidos como soldados, com pequenos bonés militares na cabeça e embrulhados em sacos de dormir verde-oliva. Em seu site, o estabelecimento explica que a roupa simboliza a “conexão entre gerações” e que até mesmo o menor cidadão da Rússia faz parte da história.

Na cidade de Voronezh, na região central da Rússia, centenas de crianças do jardim de infância participaram de um “desfile militar” que incluiu veículos militares e aviões feitos em casa.

Em Vladivostok, no extremo leste da Rússia, mais de 1.500 “bisnetos da vitória” marcharam pelo centro da cidade, no que o governador da região de Primorye, Oleg Kozhemyako, descreveu como o “primeiro desfile infantil da região”.

“Hoje, há crianças cujos pais estão lutando no front, marchando nas colunas. Estamos orgulhosos da coragem e da bravura de nossos combatentes e temos certeza de que o inimigo será derrotado, assim como aconteceu no distante ano de 1945”, afirmou, em referência à guerra na Ucrânia.

Instrumento de mobilização

Durante décadas, muitas famílias russas associaram o “Dia da Vitória” principalmente à lembrança das perdas e da devastação causadas pela Segunda Guerra Mundial. Mas isso agora está mudando. Alexey Yusupov, cientista político russo da Fundação Friedrich Ebert, disse à DW que, cada vez mais, o Estado está instrumentalizando o Dia da Vitória, celebrado em 9 de maio, para moldar uma nova identidade e ideologia.

Ele explicou que, nas últimas duas décadas, o Kremlin aprendeu a “militarizar esse dia, ou melhor, a ativá-lo, porque ele ficou gravado na memória coletiva de muitos russos como algo que uniu o país. Ele se tornou um instrumento de mobilização para o regime”.

O Kremlin usou certas datas específicas, como o 80º aniversário da derrota da Alemanha nazista neste ano, para traçar paralelos históricos entre a União Soviética e a Rússia de hoje e para demonstrar força e legitimidade do regime atual, acrescentou o pesquisador.

De acordo com Ilya Grashchenkov, do Centro de Desenvolvimento de Políticas Regionais, com sede em Moscou, o Dia da Vitória não é importante apenas para as famílias russas, mas também para o governo russo. “Nos últimos 20 anos, o Estado fez tudo o que podia para ser parte dessa comemoração. Para [o líder russo Vladimir} Putin, a vitória na Segunda Guerra Mundial é uma constante, na qual todo o Estado russo se baseia e da qual ele, como presidente, faz parte.”

Ele pondera que, por muitos anos após 1945, o 9 de maio foi um dia de luto, sem desfile militar, e que continua assim para milhões de pessoas.

Grashchenkov acredita que o governo russo tentará emplacar paralelos entre a guerra na Ucrânia e as comemorações de 80 anos da derrota nazista pelas tropas soviéticas, como aconteceu no “primeiro desfile infantil” em Vladivostok, mas que o tema não terá um papel de destaque.

Para Vladimir Putin, é importante que as comemorações sejam as mais “internacionais” possíveis, avalia o pesquisador. “A mensagem do Dia da Vitória é que a Rússia pagou um preço muito alto pela paz na Europa. Putin certamente projetará a vitória de 1945 nos combates de hoje na Ucrânia. Mas ele não dará muita ênfase a isso”.

Desfile militar em tempos de guerra

Neste ano, para o ponto alto das cerimônias de 9 de maio, Putin convidou uma série de líderes estrangeiros, incluindo o chinês Xi Jinping, o ditador Nicolás Maduro, o líder cubano Miguel Díaz-Canel, e de mais de uma dezena de países com regimes autoritários. Entre os poucos líderes de países democráticos que viajaram para acompanhar as cerimônias está o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva.

O cientista político russo autoexilado e ex-redator de discursos de Putin, Abbas Gallyamov, chama de “supérfluo” um desfile militar para comemorar o 9 de maio em pleno curso da guerra da Rússia contra a Ucrânia.

Ele afirmou à DW que tais desfiles funcionavam como “um substituto para a guerra, necessários em tempos de paz, quando o exército não está lutando, mas quer se mostrar”. Pesa ainda o fato de o exército russo ainda não ter alcançado seus principais objetivos nos últimos três anos de conflito.

“Antes de 2022, todos pensavam que a Rússia era significativamente mais forte do que a Ucrânia. Mas acabou que esse não era o caso. Não dá para chamar isso de uma excelente conduta de guerra”, acrescentou.

Na visão de Gallyamov, o desfile militar de 9 de maio é um instrumento de comunicação para o mundo e para a sociedade russa. “Os propagandistas dirão que estão perpetuando as tradições gloriosas dos heróis da vitória de 1945. Mas a sociedade russa não será influenciada por essas narrativas”.

Os paralelos que estão sendo traçados com a atual campanha militar russa são muito forçados, e está claro que as comparações não são favoráveis ao Kremlin, acredita. “Nos últimos três anos, os russos nem mesmo tiveram controle total das regiões que reivindicam, muito menos conseguiram capturar Kiev.”

No entanto, as elites de Moscou tentarão passar um clima de vitória. “Veremos muito espetáculo”, disse o cientista político Alexey Yusupov. “Ouviremos muitas declarações e veremos muitos programas de televisão.” O Kremlin vai aproveitar a data para provar que a Rússia de hoje é a mesma “força do bem” que foi há 80 anos, definiu o pesquisador.

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