Os riscos nucleares do conflito entre Índia e Paquistão

A relação entre Índia e Paquistão soma anos de instabilidade, com rivalidades territoriais e políticas que se agravam conforme a passagem do tempo. Os atritos voltaram a preocupar a comunidade internacional desde o último mês, quando cerca de 26 turistas foram mortos na região indiana da Caxemira –  o que desencadeou uma série de investidas em retaliação.

Em resposta ao ataque paquistanês, a Índia lançou mísseis contra o Paquistão também na região da Caxemira, que é terreno de disputa entre os dois países. Ocorrida na última terça-feira, 6, a situação fez com que o Paquistão replicasse a agressão com um novo ataque já no dia seguinte, deixando 12 mortos.

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O que chama atenção em relação ao cenário é que ambos os estados asiáticos são potências nucleares: segundo a Federação de Cientistas Americanos (FAS), Índia e Paquistão possuem, respectivamente, o 6º e o 7º maiores arsenais nucleares do mundo –  com 170 e 180 ogivas. Apesar dos equipamentos estarem “em reserva” ou “não implantados”, a posse de armas mantém papel importante na posição global dos países.

Em entrevista à IstoÉ, o professor de relações internacionais da ESPM, Gunther Rudzit, e o professor de Relações Internacionais da PUC-SP, Laerte Apolinário, explicaram as implicações do conflito.

Confira abaixo:

IstoÉ: Qual o histórico de confronto entre Índia e Paquistão?

Gunther: O histórico de conflito vem desde a independência dos dois países em 1947, justamente pela região da Caxemira, que era governado por um Raj Hindu, com a maioria da população muçulmana, e que tentou ficar neutro nessa disputa. Porém, por ser atacado por muçulmanos, acabou pedindo apoio ao novo governo indiano, e com isso aderiu à Índia, não ao Paquistão.

Isso deu origem à primeira guerra indo-paquistanesa, a primeira guerra da Caxemira, que vai de 1947-49, depois temos 1955-56 também pela Caxemira, e depois temos a guerra de 1971 e, mais tarde, em 1999. Mas entre essas guerras, as tensões, momentos de ataques e troca de tiros de artilharia sempre ocorreram com certa frequência, portanto é uma tensão permanente desde que os dois países se tornaram independentes em 1947.

As relações entre os dois países vêm bastante tensas, principalmente porque nos últimos anos o governo do primeiro-ministro Narendra Modi tem aplicado políticas nacionalistas tanto interna quanto externamente e isso gerou uma tensão maior entre hindus e muçulmanos. Embates e até mortes entre hindus e muçulmanos tem acontecido dentro da Índia, com movimentos para derrubar mesquitas e construir templos hindus em cima. Isso acabou levando ao aumento da tensão entre as duas sociedades e também em termos de política externa, essa postura nacionalista acaba gerando um reflexo de ameaça para os paquistaneses.

O que significa a postura “First no Use”, adotada pela Índia?

Laerte: A política de “No First Use” da Índia estabelece que o país se compromete a não utilizar armas nucleares como meio de ataque, a menos que seja alvo de um ataque nuclear. Essa doutrina visa reforçar a imagem da Índia como uma potência nuclear responsável, enfatizando a dissuasão em vez da agressão.

Existem questões culturais que agravam a relação dos dois países?

Gunther: A principal questão que agrava a situação é justamente a divisão religiosa. Esse foi o motivo central para que as lideranças muçulmanas da então colônia da Índia não aceitassem manter um único país, querendo ter o seu próprio estado para seguir suas tradições e principalmente sua forma de organização de sociedade – porque os hindus queriam um estado laico e os muçulmanos não concordavam. Então quando você tem uma disputa territorial junto com isso, essa disputa religiosa se torna a mais explosiva para gerar conflitos.

Como os recentes ataques terroristas na região da Caxemira podem escalar as tensões entre os dois países?

Laerte: Os ataques recentes na Caxemira representam gatilhos altamente sensíveis dentro de uma relação historicamente marcada por desconfiança e rivalidade entre Índia e Paquistão. Esses eventos não são apenas episódios isolados de violência, mas são percebidos, especialmente pelo lado indiano, como expressões de uma estratégia mais ampla de guerra assimétrica, na qual grupos terroristas são instrumentalizados para desestabilizar a região. Do ponto de vista estratégico, ataques como esses colocam os dois Estados em um dilema: responder de forma contida pode ser interpretado internamente como fraqueza, especialmente diante de pressões nacionalistas; por outro lado, uma retaliação robusta corre o risco de gerar uma escalada difícil de controlar, sobretudo em um contexto de fronteiras militarizadas e comunicação diplomática limitada. Assim, a possibilidade de escalonamento está menos ligada à magnitude de um ataque em si, e mais ao ambiente político-estratégico em que ele ocorre, caracterizado por baixa confiança mútua, ausência de mecanismos institucionais eficazes de gestão de crises e crescente polarização doméstica nos dois países.

Como o fato dos dois países serem potências nucleares influencia no conflito?

Gunther: Justamente por terem arsenais nucleares em quantidade parecida – entre 165, 170 ogivas cada lado – há duas visões: alguns teóricos afirmam que a posse dessas armas faz com que a racionalidade prevaleça e eles não queiram escalar um conflito para uma guerra nuclear, já que teríamos centenas de milhões de mortos.

Há, porém, outros teóricos que dizem que a arma nuclear é um perigo maior ainda, porque antes de mais nada os governos não controlam totalmente os seus países, suas instituições, suas forças armadas, não detêm todas as informações necessárias para tomar uma decisão racional. Portanto, num momento em que algo pode sair errado, algo imprevisto, acaba levando a um primeiro uso indevido ou ‘sem querer’ de uma arma nuclear e isso leva a uma troca de armamento nuclear. Essa é a grande preocupação no momento em que a escalada parece estar numa espiral ascendente.

Existem chances reais de que ogivas nucleares sejam utilizadas nesse conflito?

Laerte: A posse de armas nucleares pelos dois países cria uma situação de dissuasão mútua, onde ambos os lados evitam iniciar um conflito nuclear devido à certeza de destruição bilateral. Por outro lado, essa estabilidade nuclear pode encorajar conflitos convencionais e subconvencionais de baixa intensidade, sob a suposição de que a escalada para um conflito nuclear seria improvável. Esse fenômeno é conhecido na literatura de Relações Internacionais como o “paradoxo da estabilidade-instabilidade”.

A lógica é que, ao garantir uma forma de estabilidade estratégica no plano nuclear — isto é, a certeza de que um conflito aberto resultaria em destruição mútua — os Estados se sentem mais livres para engajar-se em ações provocativas de menor intensidade, como escaramuças fronteiriças ou o apoio indireto a atores não estatais.

Gunther: Existe, sim, uma chance real. Principalmente porque o Paquistão, por ter forças armadas menores que as indianas, sempre buscou ter mais ogivas nucleares táticas do que estratégicas – ou seja, ogivas para serem usadas em campo de batalha e não contra cidades. Se uma dessas ogivas vier ser usada, esse é o grande problema.

A Índia concentrou mais a sua força nuclear em armas estratégicas e aí ela responderia com uma dessas e, portanto, poderia levar de uma ”guerra nuclear localizada”, tática para uma guerra nuclear estratégica entre os dois países. Esse é um cenário que preocupa muito e que não é totalmente descabido,muito pelo contrário.

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