O que diz a Constituição sobre a chance do semipresidencialismo vigorar no Brasil

Uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição) protocolada Câmara dos Deputados defende a alteração do sistema de governo brasileiro, substituindo o presidencialismo pelo semipresidencialismo. 

No modelo, o presidente da República deixa de ser, ao mesmo tempo, chefe de Estado e chefe de governo, e a segunda função é transferida a um primeiro-ministro (cargo a ser criado), nomeado pelo ocupante do Palácio do Planalto a partir de um acordo com as maiores bancadas do Congresso.

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A estrutura dá a esse representante autonomia para definir a distribuição do orçamento federal e o plano de governo e, na prática, empodera o Legislativo. A mudança tem apoios de peso, como Hugo Motta (Republicanos-PB), o novo presidente da Câmara, e o ministro Gilmar Mendes, decano do STF (Supremo Tribunal Federal), mas depende — além da tramitação — de uma complexa discussão constitucional.

Escolhido pela população em um plebiscito popular realizado em 1993, o presidencialismo não é declaradamente protegido pela Constituição Federal e foi questionado em outros contextos, ao contrário do que ocorre com a soberania do voto popular e a distribuição dos Três Poderes da República.

As margens da Constituição

Diante das divergências consistentes em torno da proposta, o site IstoÉ procurou referências do direito constitucional para entender se o texto de 1988 dá sustentação ou restringe a discussão.

— Alessandro Soares é professor de direito constitucional do Mackenzie.

— Georges Abboud é professor de direito constitucional da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica).

— Luiz Viana Queiroz é advogado, conselheiro Federal da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) da Bahia e vice-presidente da associação brasileira de constitucionalistas democratas.

A PEC do semipresidencialismo encontra sustentação no texto constitucional? Há base para que ela seja avalizada pela Comissão de Constituição e Justiça?

Alessandro Soares Em primeiro lugar, é preciso avaliar se essa alteração afeta a separação dos Três Poderes, porque isso está estabelecido em cláusula pétrea. Se houver, como me parece, uma concentração de poder na esfera do Legislativo, há uma violação.

Outro impasse está na perspectiva de esvaziamento da relevância do voto popular, também protegido de forma pétrea pela Constituição. No atual sistema, a população elege um governo — não apenas um chefe de Estado. Uma definição por outro meio pode submeter o povo a uma espécie de eleição indireta, em que a escolha dos representantes no Legislativo é aquela que, na prática, define o governo. Isso pode violar a cláusula do voto direto e, portanto, embasar um questionamento no Supremo Tribunal Federal.

Já houve um plebiscito popular para definir o modelo de governo da República, convocada pelo Poder Constituinte. Esse fato por si comprova que não há impedimento para uma nova discussão do sistema. Mas é prudente que haja um amplo debate e consulta popular, primeiro sobre a possibilidade da alteração, e depois para aprovação ou não do sistema em si. [O debate] não pode ficar restrito aos próprios congressistas, porque isso violaria de forma muito direta a soberania popular.

Georges Abboud O modelo de governo, em si, não é uma cláusula pétrea, o que o torna sujeito à alteração por emenda constitucional ou decisão plebiscitária, desde que justamente as cláusulas pétreas estejam respeitadas.

Um semipresidencialismo pode ser adotado, portanto, desde que haja respeito ao pluripartidarismo, à divisão dos Três Poderes e à forma federativa do Estado. Preservadas essas exigências, o debate sobre a mudança pode ser travado dentro das instituições e avalizado pela Comissão de Constituição e Justiça.

A adoção desse modelo, em si, demandaria um pacote de revisões da Constituição — não apenas uma. O sistema poderá até ser adotado por meio de uma decisão plebiscitária, mas a criação da figura do primeiro-ministro, a definição das atribuições do presidente e as demais alterações dependem necessariamente de revisões do texto constitucional.

Luiz Viana Queiroz Não há sustentação no texto da Constituição, porque o presidencialismo é clausula pétrea implícita. Apesar de não estar entre as cláusulas explícitas, o presidencialismo junto com a República foi objeto de consulta direta ao povo, em 1993, por ordem da Assembleia Constituinte. É preciso levar a sério o texto constitucional e o resultado dessa consulta popular.

A Constituinte só mandou consultar o povo neste único caso — República ou monarquia, presidencialismo ou parlamentarismo. Trata-se, portanto, de hipótese singular do texto constitucional irrepetível. O resultado do plebiscito estabilizou eternamente a República e o presidencialismo. Não há base jurídico-constitucional para que ela receba o aval da CCJ e seja discutida em plenário. Ela simplesmente não pode tramitar.

Gilmar Mendes defendeu a alteração do regime com o argumento de que, na prática, o Legislativo já se sobrepôs aos demais Poderes, e afirmou que a mudança poderia ocorrer por meio de uma ‘cirurgia menos invasiva’. Concorda com a avaliação?

Alessandro Soares Não há como negar que o Congresso expandiu seu poder às custas do Executivo. Mas não é possível afirmar que isso já representa um sistema semipresidencialista. Quando a população escolheu seus representantes na última eleição, ela os elegeu dentro de um sistema presidencialista. O que é necessário pontuar é que há, em curso, uma violência muito grande contra o texto constitucional: o voto no Executivo e, por consequência, o texto constitucional estão sendo desrespeitados em uma realidade onde o Legislativo governa.

Quando o ministro Gilmar apresenta essa questão, me parece faltar a interpretação dessa violação. Há uma crença legítima na melhoria do sistema político, com menos crises e maior clareza na tomada de decisões. Não há como projetar, no entanto, se isso ocorrerá do ponto de vista concreto. A mudança de regime pode beneficiar muito um sistema parlamentar que tende ao conservadorismo, enquanto a população elegeu um governo que não tem essa característica. Pode haver um desencontro muito profundo.

Luiz Viana Queiroz Gilmar Mendes é o decano do Supremo e um dos maiores constitucionalistas da história contemporânea do Brasil. Merece sempre ser ouvido. Neste caso, eu humildemente divirjo.

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