Juízes da Hungria lutam por uma Justiça independente

"CentenasEm fevereiro, centenas de juízes saíram às ruas num protesto inédito para exigir independência do Judiciário e melhores condições de trabalho. No entanto a Justiça continua sob ataque do governo de Viktor Orbán.Embora não seja advogada há muito tempo, atualmente Adrienn Laczó é a uma das juristas mais destacadas da Hungria. Ela ganhou fama-relâmpago no fim de novembro de 2024, ao declarar numa postagem no Facebook que não tinha outra opção senão abandonar a profissão de juíza, que exercia há 24 anos.

À DW, ela declara: “Na Hungria, a independência da Justiça foi abolida.” É sabido que há boatos e atritos dentro do aparato judiciário do país, mas não é comum alguém falar tão abertamente como Laczó. E, no entanto, ultimamente ela não está sozinha.

Em 22 de fevereiro, centenas de juízas e juízes protestaram diante do Ministério da Justiça, na central Praça Kossuth, juntamente com familiares e apoiadores, exigindo independência do Judiciário, além do aumento de seus salários, que estão entre os mais baixos da União Europeia para o setor. Nunca houve uma reivindicação assim no país, e mesmo em outras partes da Europa isso é algo extremamente raro – como foi o caso da Polônia, alguns anos atrás.

No momento, ir assim às ruas protestar contra o sistema do primeiro-ministro Viktor Orbán já exige muita coragem, pois significa pôr em risco o emprego e as perspectivas de carreira. No caso dos magistrados é pior ainda: antecipando os protestos, Zsolt Bayer, um jornalista pró-governo e amigo de Orbán conhecido e extremamente grosseiro, exigiu que se divulgasse uma lista com os nomes de quem pretendia participar.

Magistrados tentam trabalhar e sobreviver

Laczó também estava entre esses manifestantes. Em sua opinião, a presença de tantos destemidos, apesar da “convocação à listagem”, mostra quão grande é a insatisfação entre os 2.600 juízes húngaros: “Conheço muitos que pensam como eu, mas tentam fingir que estão julgando num vácuo. É a profissão deles, e eles amam seu trabalho, então tentam sobreviver.”

A própria ex-juíza também enfrentou anos de luta interior antes de ir a público. A primeira vez que teve a sensação de que algo não estava certo foi em 2012, quando o governo Orbán impôs a aposentadoria compulsória para os magistrados entre 62 e 70 anos de idade.

Em consequência, centenas de profissionais experientes, que ocupavam cargos de liderança, foram afastados dos tribunais. Laczó explica que “isso gerou insegurança na instituição, e juízes mais jovens foram recompensados ao ocupar esses postos”.

Embora o governo tenha retirado o decreto já no ano seguinte, por pressão dos órgãos europeus, muitos dos aposentados não retomaram seus antigos cargos: para eles era tarde demais. “Portanto o governo alcançou a sua meta”, conclui Laczó.

Desde então aumentou a pressão sobre os tribunais, sobretudo nos últimos cinco ou seis anos. No entanto “não é que alguém ligue para um juiz que trata de um caso politicamente delicado e lhe diz que veredicto espera”: “É mais que alguns juízes percebem como alguns sobem mais rápido na hierarquia, enquanto outros ficam para trás. Quem toma decisões que agradem ao governo, avança mais rápido.”

Supremo tribunal dá cobertura a Orbán

Como exemplo, Adrienn Laczó cita a Kúria, o supremo tribunal húngaro, onde ela vê atuarem muitos juízes desprovidos de competência específica e experiência profissional. O próprio presidente do órgão foi nomeado sem ter jamais trabalhado como juiz, ou seja, por motivos políticos – fato que também se refletiria em seu trabalho.

Um processo jornalístico de 2024 mostra bem para que Orbán e seu aparato precisam de uma Justiça complacente, sobretudo de instituições como a Kúria. O diretor-gerente da cadeia holandesa de supermercados Spar havia declarado ao jornal alemão Lebensmittel Zeitung, especializado em produtos alimentícios, que o premiê lhe sugerira permitir a participação de parentes seus na sucursal húngara da empresa.

Orbán processou então todos os veículos húngaros que noticiaram sobre esse artigo, mas perdeu em primeira instância. No entanto, em seguida apelou da sentença perante a Kúria, que decidiu contra dois dos jornais, alegando que caberia a eles provar que as declarações do diretor da Spar eram verdadeiras.

Desse modo, o supremo tribunal húngaro criou um precedente para processos midiáticos semelhantes, criando possíveis restrições para o jornalismo no país, explica Laczó. Pois desde 2020 a lei estabelece que só com justificativa especial os tribunais de menor instância podem se desviar das decisões da Kúria.

População húngara sem proteção legal

Cabe aguardar se o primeiro protesto público das juízas e juízes afetará de alguma forma a situação da Justiça húngara. Porém o movimento já conta com amplo apoio internacional: no ato do fim de fevereiro, por exemplo, o presidente da Associação Internacional de Juízes (IAJ, na sigla em inglês), Đuro Sessa, se pronunciou. E, em reação às falhas do Judiciário nacional, há um bom tempo a UE vemcongelando verbas destinadas à Hungria.

O veredicto de Adrienn Laczó é claro e incisivo: “Não existe mais na Hungria o Estado de direito em relação à Justiça, já que a independência organizacional dela foi eliminada. Até mesmo a independência individual dos magistrados está sob forte ameaça. E sem uma Justiça independente não há mecanismos de defesa para as cidadãs e cidadãos húngaros.”

A ex-juíza está pessoalmente contente de poder atuar como advogada, e não teme calúnias contra si ou sua família. Porém a advocacia é apenas um substituto para o que ela de fato queria fazer: “Ser juíza era a profissão dos meus sonhos, e eu gostaria de ter me aposentado como tal. Porém não dava mais.”

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