
Quando eu era criança, câncer era uma palavra que ouvia falar — mas bem de longe. Era coisa de adulto, de gente mais velha. No entanto, havia uma ideia mais ou menos clara de que, quanto mais velha a pessoa, maior era a chance de aparecer essa doença. Essa lógica fazia sentido: com o tempo, nosso organismo sofre, se desgasta e acaba ficando mais vulnerável. Era também uma sentença de morte. Muito pouco havia sobre o conhecimento da doença e de seu tratamento.
Uma realidade que mudou — e para pior
De uns tempos para cá, algo diferente começou a acontecer. Cada vez mais jovens estão recebendo esse diagnóstico — pessoas de 40, 30, até mesmo de 20 e poucos anos. E não, não é impressão. É real mesmo. Só nas últimas três décadas, o número de casos em pessoas abaixo dos 50 anos aumentou 80%. E a mortalidade subiu junto, em cerca de 30%. Existe algo implícito nisso: nosso corpo está tentando nos mandar um sinal. Na verdade, um recado claro: ele não está dando conta do nosso jeito moderno de viver.
Mas por quê? Como assim? O que aconteceu com o nosso corpo — ou melhor, com o nosso mundo?
Vamos voltar no tempo. Durante milhares de anos, nós, seres humanos, vivíamos correndo atrás de comida — literalmente. Era caçar, coletar frutas, fugir de predadores. Nada de fast-food, nada de delivery, nada de “combo gigante com refrigerante grande”. Daí veio a agricultura, há cerca de 10.000 anos, evoluiu a civilização, aprendemos a conservar os alimentos, armazená-los e transportá-los. Tudo ótimo!
Até que, lá pelo século XIX, veio uma revolução: a indústria alimentícia — comida prática, rápida e deliciosa. Trocamos a feira de alimentos frescos pela prateleira do supermercado. Se, por um lado, conseguimos controlar doenças infecciosas e parasitárias, com redução drástica da desnutrição e da mortalidade por essas causas, por outro, vieram alimentos agressores, recheados de substâncias que o nosso organismo não reconhece como boas: nitritos, nitratos, emulsificantes, corantes — um verdadeiro coquetel químico disfarçado de comida.
Estilo de vida moderno: um terreno fértil para o câncer
Vieram também mudanças paulatinas nos hábitos ao longo do século XX. Com a migração do campo para a cidade, trocamos o estilo de vida ativo — de andar a pé, ter contato com a natureza, comer comida de verdade — pelo carro, o sedentarismo, a obesidade, o estresse urbano, os agrotóxicos e a poluição ambiental.
Estamos expostos à luz artificial 24 horas por dia, alterando nosso ciclo biológico; ao consumo excessivo de álcool; ao tabaco e ao cigarro eletrônico (que, surpresa, tem ainda mais nicotina que o cigarro comum). Resultado: nosso corpo surtou! Uma explosão de doenças crônicas, degenerativas, mentais — e o câncer.
E não são só os cânceres tradicionalmente incidentes como o de cólon ou de mama que preocupam. Vemos também um aumento em cânceres hematológicos e pediátricos, doenças que, há 50 anos, eram de baixa frequência nessa faixa etária.
Esperança existe — e começa com informação
Mas nem tudo está perdido. O tratamento evoluiu. Drogas específicas, vacinas, cirurgias menos invasivas, robóticas e laparoscópicas transformaram a sentença de morte em um tratamento, embora árduo, cheio de esperança, com possibilidades reais de cura.
E é possível fazer mais! Até 80% dos casos de câncer podem ser evitados ou pelo menos tratados precocemente. A ciência corrobora um antigo ditado: juízo e caldo de galinha só fazem bem. É possível agir a nosso favor. Quebrar esse ciclo passa por escolhas mais simples do que parecem.
Comer comida de verdade (aquela que sua avó reconheceria como alimento — frutas, verduras, legumes e carnes frescas), mexer um pouco todo dia (não precisa correr uma maratona — só sair do modo estátua ou uma dancinha já ajudam!), ficar de olho na balança, evitar cigarro, vape, álcool e o contato com poluentes e produtos tóxicos são atitudes básicas de cuidado consigo mesmo.
E, claro, fazer os exames de rastreamento quando chega a hora. Diagnosticar cedo pode salvar vidas. O câncer pode estar mudando de cara — mas nós também podemos mudar o final dessa história. Entender as raízes do problema é um primeiro passo. A escolha é nossa.
*Por Dr. Valter Alvarenga Júnior – CRM 52.80429-0 RQE 19476
Cirurgião Oncológico do Hospital Universitário da UFRJ