‘Qualquer retrocesso será desgaste para novo papa’, diz embaixador na Santa Sé

ROMA – Antes de assumir a embaixada brasileira junto à Santa Sé, o embaixador Everton Vieira Vargas não achava que teria pela frente um conclave. Foi surpreendido pela morte do papa Francisco, com quem manteve um diálogo próximo desde que assumiu o posto. Agora, Vargas vê a eleição do novo para como “crucial” para o Brasil. A depender do novo pontífice, articulações centrais da política brasileira perante o mundo podem aquecer ou esfriar.

É o caso, diz ele, da Aliança Global Contra a Fome e a Miséria, que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva lançou na reunião de cúpula do G-20, no ano passado, no Rio de Janeiro. Também entram no jogo as posições do Brasil e do Vaticano em relação a guerras, a questão ambiental e o multilateralismo. “Até aqui, a Igreja e o Brasil convergem nesses temas”, disse o embaixador em entrevista ao PlatôBR.

Vargas fez suas apostas e adiantou nomes que, em sua avaliação, darão continuidade às políticas defendidas pelo papa Francisco. Há dois anos, antes de seguir para Roma como embaixador, o diplomata buscou conhecer melhor cada um dos cardeais brasileiros. Ele se diz impressionado, por exemplo, com dom Sérgio da Rocha, tanto por sua profundidade intelectual quanto por sua concepção sobre a necessidade do diálogo inter-religioso, que era uma bandeira de Francisco na qual, nas palavras do embaixador, não há como a Igreja retroceder.

O diplomata brasileiro observa que, se a escolha do conclave for por um papa da Ásia ou da África, será o reconhecimento da importância de regiões onde o catolicismo mais tem crescido nos dias atuais. “Uma das mensagens mais potentes que o papa Francisco deixou para a Igreja, entre tantas, é: ‘olha, não podemos ficar aqui isolados’”.

A seguir, alguns dos principais tópicos da entrevista.

Choque cultural
Para Vargas, o conclave acontece em uma situação bastante diferente dos anteriores porque nunca houve um Colégio de Cardeais tão plural do ponto de vista cultural, graças à iniciativa do papa Francisco, que nomeou cardeais em países que nunca tiveram acesso à cúpula da Igreja. O resultado virá, segundo Vargas, do choque entre essas culturas. “Acho que este será um conclave muito especial porque nunca o Colégio Cardinalício foi tão diverso e tão universal. Isso coloca desafios enormes para a igreja. Não é mais um grupo de cardeais europeus que vai eleger o papa. Agora são cardeais do mundo inteiro e cada um com sua percepção do mundo, da Igreja, e com desafios muito candentes em cada uma de suas paróquias.”

O embaixador lamenta não poder participar das congregações gerais, que ocorrem nesta fase pré-conclave e que servem para que os cardeais que vão votar e serem votados possam se conhecer e falar sobre temas importantes e sobre como pensam o papel da Igreja diante dos desafios do mundo. “Confesso que lamento muito que a gente não possa estar, sobretudo, nessas congregações gerais. Elas é que definem, no fundo, como é que vão ser as votações no âmbito do conclave. As congregações é que são decisivas. Cada cardeal tem oportunidade de dar sua visão.” “Eu vejo que o conclave deste ano vai ter essa especificidade. Vai ter atores diferentes, com diferentes culturas. Como vai ser? Como vai ser esse choque cultural? Acho que esse é o ponto interessante. Como um europeu vai entender os bispos africanos? Ele vai entender o cardeal da Papua Nova Guiné? Essas coisas todas são importantíssimas e vão ser decisivas na formação da noção das coisas, de consensos, das maiorias. É um elemento, na minha opinião, decisivo para a eleição do futuro papa.”

Crise nas contas
Vargas conta que soube que, no último conclave, o discurso que levou Jorge Mario Bergoglio a ser escolhido papa foi breve e tocou exatamente nos problemas mais cruciais da Igreja. Um deles, as contas. Hoje, o Vaticano tem uma déficit de 70 bilhões de euros, o que corresponde a mais de R$ 340 bilhões. “Quando o papa Francisco foi eleito, a coisa determinante para que os cardeais viessem engrossar o apoio ao nome dele foi exatamente o discurso que ele fez e, segundo eu soube, foi extremamente curto, mas no qual ele tocava nos pontos nevrálgicos da crise da Igreja, em particular na questão que ele não conseguiu resolver no seu pontificado, que é a crise financeira da Igreja. E é esse o desafio que o futuro papa também terá. Agora está melhor do que estava há doze anos, mas não é uma coisa simples. Quem vai fazer tal discurso?” O embaixador justificou o caráter prático de sua observação. “Quando a gente vem designado para a Santa Sé, acham que a gente vem para cá para rezar. Eu costumo dizer que, aqui, a gente também reza, mas também por aqui desfilam todos os temas que se tem na vida normal. Então é um lugar muito peculiar.”

Principais apostas
O embaixador brasileiro tem seus palpites sobre quem deverá assumir o lugar do papa Francisco. “Temos pelo menos cinco ou seis grandes candidatos. Eu cito os cardeais italianos Pietro Parolin e Matteo Zuppi, o francês Jean-Marc Aveline, o ganês Peter Turkson, o congolês e arcebispo de Kinshasa Fridolin Besungu. Também o português José Tolentino de Mendonça. Outro que pode surpreender é Robert Francis Prevost, que tem uma trajetória muito peculiar. Ele é agostiniano, norte-americano, fez carreira no Peru.” “Muitas pessoas têm colocado suas esperanças no filipino Luis Antonio Tagle. Não é a minha aposta. Ele foi um grande cardeal em Manila, mas a minha sensação é que ele murchou no meio da Cúria Romana, não cresceu”, avaliou o representante do governo brasileiro na Santa Sé.

Nem ao mar, nem à terra
Apesar de ser católico praticante e manter vínculos próximos com cardeais, Vargas faz uma ressalva: não é um expert. Ainda assim, ele aposta que qualquer retrocesso poderá significar um desgaste muito grande para a Igreja no pós-papado de Francisco. “Eu não sou teólogo, não sou expert na Igreja Católica, em tudo que o papa disse e no que pensam os cardeais. Colocando esse preâmbulo, minha percepção é que qualquer retrocesso que um papa venha a fazer, na minha opinião, causará um enorme desgaste para o próprio papa e para a Igreja Católica. E isso que estou dizendo se encaixa no que eu disse antes sobre o caráter especialíssimo desse conclave. Lamento que não participem das congregações gerais historiadores que poderiam registrar o que vai ser discutido”, afirma.

Everton Vargas acredita que não há espaço para posições extremadas. “No caso do cardeal Robert Sarah, em minha opinião, não será um candidato forte porque ele foi extremamente radical em suas posições.” Sarah é conhecido por posições conservadoras que se chocaram com o papado de Francisco. Ele nasceu na Guiné, é o nome preferido da direita e defende que a Igreja retorne aos seus princípios. Ao falar de costumes e política, o africano compara o nazifascismo e o comunismo com a homossexualidade e o fanatismo islâmico. Ele se posiciona contra a imigração, por considerar uma “nova forma de escravidão”. “Da mesma forma que eu acho que alguns cardeais que são mais avançados, que acharam que o Francisco fez pouco, também não vão conseguir ir para frente”, emendou o embaixador.

“O que eu acho que eles (os cardeais) vão buscar é um líder que terá, por um lado, que resolver os problemas que ainda permanecem, e outros problemas novos derivados desses doze anos de um pontificado hiperdinâmico e, ao mesmo tempo, colocar a necessidade de uma consolidação daquilo que o papa Francisco inovou. São essas duas forças que o novo papa terá que trabalhar. Ele terá que ter um discernimento muito preciso”, disse.

Relação com o Brasil
O embaixador lembra que a proximidade entre o presidente Lula e o papa Francisco foi fundamental para que as relações entre o Brasil e a Santa Sé crescessem muito nos últimos dois anos. “Quando o Lula esteve preso, o papa mandou mensagens a ele, telefonou a ele e, ao sair da prisão, a primeira visita que o Lula fez foi exatamente ao papa Francisco.” O embaixador disse que a proximidade com o presidente foi comentada pelo papa no momento em que ele se apresentou ao Vaticano: “O papa me disse, diretamente, quando eu fui entregar minhas cartas credenciais, que tinha um grande apreço por Lula”.

Foi justamente essa proximidade que rendeu pautas comuns. “Há uma enorme convergência entre o Brasil e a Santa Sé nas questões relativas ao combate à fome e à pobreza, a questão da paz no mundo, do meio ambiente, em particular da mudança do clima, a essa questão da inteligência artificial e do multilateralismo, por exemplo. Há toda uma pauta, que não é pequena no campo das relações internacionais, em que a Igreja e o Brasil convergem. Isso foi objeto de conversa nas duas vezes em que o presidente e o papa estiveram juntos. Em junho de 2023 eu ainda não estava aqui quando Lula veio visitar o papa. A outra vez foi no ano passado, na reunião do G7.”

Contra a miséria
Segundo o embaixador, foi de uma posição externada pelo papa Francisco que surgiu a marca que Lula buscou imprimir no encontro da cúpula do G20 no ano passado, no Rio de Janeiro. “O papa sempre faz um discurso ao corpo diplomático para falar de como ele vê o mundo, quais são os desafios do mundo atual. Nessa ocasião, o papa propôs a criação de um fundo internacional para financiar ações de combate à fome e à pobreza. Nós, na época, estávamos começando a preparar a cúpula do G20. Uma das ideias que havia (…) foi exatamente a Aliança Global para a Fome e a Pobreza”, disse.

O embaixador brasileiro na Santa Sé observa que o caminho está pavimentado para que a parceria continue. Mas, claro, tudo vai depender da sensibilidade de quem for eleito para suceder Francisco. “Essa pessoa virá com suas categorias mentais, com sua visão de mundo. Se for uma pessoa de um país onde os dramas do mundo em desenvolvimento não estão presentes, um país satisfeito, pode não ter esse mesmo peso. Por isso essa eleição é crucial para o Brasil”, diz.

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