
A judicialização do direito de arrependimento no consumo digital tem colocado em xeque modelos econômicos inteiros. Um dos alvos mais recorrentes são as plataformas de venda de ingressos, que passaram a ser questionadas por reterem a chamada taxa de conveniência em casos de cancelamento de compra. Em meio a autuações de órgãos administrativos e decisões judiciais isoladas, o que está em jogo vai muito além de valores residuais. Trata-se da própria viabilidade de um ecossistema digital que sustenta milhares de eventos e fomenta o acesso à cultura no Brasil.
Essa prática empresarial, longe de ser arbitrária, encontra respaldo jurídico sólido, amparo contratual claro e jurisprudência favorável. A tentativa de equiparar ingresso e taxa de conveniência como um mesmo bem de consumo, a ser devolvido em bloco, desconsidera a autonomia e a natureza distinta dos serviços prestados. É hora de separar o discurso populista da análise jurídica e devolver racionalidade ao debate.
O serviço foi prestado. O risco é inverter a lógica da prestação contratual
A taxa de conveniência é a remuneração por um serviço efetivamente prestado. Intermediação, suporte, tecnologia, segurança antifraude, gestão de pagamento e acesso remoto por meio de plataformas digitais formam uma cadeia de valor complexa, sustentada por empresas que investem pesadamente em inovação e infraestrutura. Esses serviços viabilizam desde grandes festivais até pequenos eventos comunitários, permitindo acesso descentralizado à cultura e inclusão de produtores de todos os portes.
Ignorar a natureza autônoma desse serviço é aplicar de forma distorcida o artigo 49 do Código de Defesa do Consumidor. O arrependimento previsto nesse dispositivo diz respeito ao contrato como um todo, mas não apaga o fato de que houve uma prestação de serviço consumada. Assim como a comissão de corretagem é devida mesmo que haja desistência posterior da parte compradora, a taxa de conveniência se consolida quando o consumidor opta por adquirir o ingresso via plataforma digital, com ciência prévia do valor cobrado.
Essa analogia foi reconhecida pelo STJ ao equiparar a taxa de conveniência à comissão de intermediação, validando sua cobrança e a retenção mesmo em caso de cancelamento, desde que o valor seja previamente informado e destacado de forma clara ao consumidor. Há decisões recentes que reconhecem o exaurimento da obrigação do fornecedor após a emissão do ingresso e o processamento da compra, impedindo a restituição integral como se o serviço não tivesse sido realizado.
Direito de arrependimento não pode ser usado como instrumento de desequilíbrio
Essa postura compromete o equilíbrio das relações contratuais, estimula o uso estratégico do arrependimento e impõe às empresas um ônus desproporcional, incompatível com a boa-fé objetiva e com a função social do contrato. A legalidade da retenção parcial não apenas é defensável, mas necessária para a sustentabilidade econômica das plataformas, a continuidade dos pequenos eventos e a proteção de todo o setor cultural que depende diretamente desses serviços.
Não se trata de relativizar direitos do consumidor, mas de reconhecer que a proteção legal deve ser aplicada com técnica, razoabilidade e segurança jurídica. O uso instrumental do arrependimento para exigir a devolução de um serviço já prestado, quando informado de forma clara e previamente destacado, desvirtua os próprios fundamentos do Código de Defesa do Consumidor.
Do ponto de vista estratégico, o papel dos departamentos jurídicos deve ser o de antecipar riscos, reforçar cláusulas contratuais de transparência, registrar a entrega efetiva do serviço e alinhar práticas de atendimento com foco em segurança jurídica. Empresas dos setores de eventos, cultura, educação, turismo e esportes estão diretamente expostas. As que não adotam medidas preventivas adequadas se tornam alvos fáceis para sanções administrativas e litígios com impacto econômico significativo.
Sem segurança jurídica, não há acesso, inovação ou cultura
A retenção da taxa de conveniência não é exceção, mas sim a regra jurídica aplicável a um serviço digital já prestado. A devolução automática desse valor, sob o argumento do direito de arrependimento, ignora fundamentos contratuais, jurisprudência consolidada e a própria Constituição, que reconhece a livre iniciativa como um dos pilares da ordem econômica.
A defesa firme dessa prática não é apenas legítima. É indispensável para preservar um ecossistema que garante acesso, inclusão e dinamismo a milhares de eventos em todo o país. Quando o jurídico recua diante da pressão interpretativa dos órgãos administrativos, abre-se espaço para a fragilização de negócios que sustentam a cultura, o lazer e a economia criativa no Brasil.
Direito de arrependimento não é cláusula automática de anulação, mas instrumento de equilíbrio que não pode servir para desestruturar contratos válidos nem anular serviços já prestados. Taxa de conveniência é serviço, não penalidade, e taxa de serviço não é brinde, é custo operacional.