[Coluna] Lula e Janja visitam seu “amigo pessoal” Putin

"DePara a Europa é pouco admissível Lula e primeira-dama prestarem honras a um agressor bélico autocrático como Putin. Mas ele age pragmaticamente, seguindo uma longa tradição brasileira. Estados têm interesses, não amigos.As imagens de Moscou são inequívocas: o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sentia-se visivelmente bem em sua visita de Estado à Rússia, por ocasião das festividades pelos 80 anos da vitória sobre o nazismo.

Ele descreveu o encontro com seu homólogo Vladimir Putin como um “momento histórico”, enfatizando a importância da parceria Brasil-Rússia: “Temos a chance de, neste momento histórico, a gente poder fazer com que nossa relação comercial possa crescer muito.”

Sua esposa, Janja da Silva, já viajara cinco dias antes para a Rússia, a convite pessoal de Putin. Ela visitou o Kremlin, o Teatro Bolshoi, o museu Hermitage – mas também a Universidade de São Petersburgo, a fim de discutir temas como educação e cultura, e a Aliança Global Contra Fome e Pobreza iniciada pelo Brasil.

Lula não criticou, ou sequer mencionou com uma só palavra, que a Rússia continua em guerra com a Ucrânia, ou que persegue e assassina membros da oposição. Não há notícias de que o mandatário brasileiro tenha pressionado Putin a negociar pela paz. De Janja, tampouco se ouviu dizer que tenha condenado a sistemática repressão das vozes críticas nas universidades russas.

Por fim, Lula participou do desfile de vitória em Moscou, como único chefe de Estado de uma grande democracia a apoiar Putin na ocasião. Os demais 29 líderes de Estado e governo presentes provinham quase exclusivamente de nações autoritárias, como China, Venezuela, Belarus ou Coreia do Norte.

Embora tenha se pronunciado na Organização das Nações Unidas contra a invasão russa da Ucrânia, o Brasil rejeita as sanções e segue cultivando relações diplomáticas e econômicas intensificadas com Moscou – apesar do mandado de prisão do Tribunal Penal Internacional contra Putin.

Solidariedade Sul-Sul

Essa apresentação de Lula e sua primeira-dama nos desconcerta na Europa: afinal de contas, trata-se de um político que esteve, ele próprio, nas garras de uma ditadura militar, e que deve também à pressão internacional o fato de ter sobrevivido à prisão e à perseguição.

No entanto, por mais que, de uma perspectiva ocidental, sua participação no desfile triunfal de Putin seja moralmente discutível ou condenável, do ponto de vista da política de poder e do pragmatismo, ela é consistente. Segundo o realismo político, uma escola clássica das relações internacionais, os Estados agem, em primeira linha, em interesse próprio, não segundo critérios ideológicos ou morais: Estados têm interesses, não amigos.

Desse ponto de vista, o Brasil trilha uma política externa independente, multipolar, uma “autonomia pela diversidade”, e não se vê como vassalo do Ocidente. O país não quer tomar partido – Ocidente x Oriente – mas sim atuar com autodeterminação – mesmo que isso seja desconcertante, de uma perspectiva europeia.

Portanto está claro que Lula utilizou o palco de Moscou para demonstrar a independência de seu país e sua prerrogativa enquanto potência média global. Ao mesmo tempo, posiciona-se como principal representante da esquerda latino-americana contra a “moralização” ocidental das relações internacionais – em especial quando ela parte de Estados igualmente responsáveis por intervenções militares.

Além disso, essa apresentação é símbolo de uma crescente solidariedade Sul-Sul. Assim como o Brasil, e ao lado da China e da Índia, a Rússia é membro fundador do grupo Brics. Em julho, o Brasil será anfitrião de mais uma cúpula dessa aliança que pretende propor alternativas à ordem mundial de dominação ocidental.

A viagem de Lula é uma ruptura calculada com as expectativas diplomáticas, porém ele dá continuidade a uma longa linha de política externa profundamente arraigada na tradição diplomática brasileira. Quer a gente na Europa goste, quer não.

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Há mais de 30 anos o jornalista Alexander Busch é correspondente de América do Sul. Ele trabalha para o Handelsblatt e o jornal Neue Zürcher Zeitung. Nascido em 1963, cresceu na Venezuela e estudou economia e política em Colônia e em Buenos Aires. Busch vive e trabalha em Salvador. É autor de vários livros sobre o Brasil.

O texto reflete a opinião pessoal do autor, não necessariamente da DW.

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