Moradores da sombria antiga Colônia Dignidade, no Chile, resistem a desapropriação

A Colônia Dignidade mudou de nome em 1991 para deixar para trás o seu passado sombrio. Mas não conseguiu escapar de seus demônios e agora seus moradores esperam impedir o despejo deste ex-centro de repressão da ditadura do Chile que se transformará em um memorial.

Durante décadas, neste enclave alemão no sul do Chile, agora conhecido como Villa Baviera, os direitos humanos foram violados, e cerca de 250 moradores foram submetidos a condições análogas à escravidão por seu sinistro líder, o falecido Paul Schäfer.

O ex-enfermeiro do exército alemão, também permitiu que o local fosse usado como prisão, centro de tortura e desaparecimento para opositores da ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990). Estima-se que 26 opositores desapareceram no bairro, e dezenas de pessoas foram sequestradas e torturadas, segundo dados oficiais.

Em 2024, o presidente de esquerda Gabriel Boric ordenou a expropriação de 116 dos 4.800 hectares do local.

Isso será feito às custas dos 122 colonos, que terão que vender parte de suas propriedades ao Estado, incluindo a área onde suas casas estão localizadas. Alguns deles resistem.

“Os colonos conhecem cada detalhe, cada edifício, cada árvore. E onde antes sofriam e eram obrigados a trabalhar, (…) querem preservar e considerar como seu, como seu esforço”, afirma Anna Schnellenkamp, nascida na Villa Baviera há 48 anos, com uma expressão severa.

Anna é filha do falecido Kurt Schnellenkamp, acusado pela Justiça como cúmplice de Schäfer e que cumpriu sua pena na prisão.

– Turismo e produção agrícola –

O governo chileno busca completar o processo de desapropriação antes de março, quando Boric entregará o cargo ao seu sucessor.

“Vai ser o maior memorial que nosso país já teve”, e haverá uma cerimônia de recordação similar à dos campos de concentração do regime nazista na Europa depois da Segunda Guerra Mundial, explica o ministro de Justiça chileno, Jaime Gajardo, à AFP.

A ditadura deixou cerca de 3.200 mortos e mais de 38 mil pessoas torturadas.

A colônia, hoje, funciona como um centro de produção agrícola e de carne, abastecendo o mercado nacional. Há também um restaurante e um hotel. Cerca de 200 chilenos também trabalham na Villa Baviera.

As fábricas, assim como todos os outros edifícios, serão desapropriadas, e a vida na colônia como é conhecida acabará.

“Está praticamente tirando toda nossa existência”, lamenta Markus Blanck, de 50 anos, um dos gerentes de negócios do enclave.

Como no caso de Schnellenkamp, o padre de Blanck também foi acusado como cúmplice de Schäfer. Hans Blanck faleceu antes de sua sentença.

Atualmente, os moradores afetados ainda não decidiram se vão se mudar para dentro ou para fora do terreno que não será desapropriado.

O governo afirma estar cumprindo a legislação. “Aqui há um interesse nacional em preservar o patrimônio histórico do nosso país” e “como a desapropriação é altamente regulamentada, o Estado chileno deve pagar um preço justo por esses ativos desapropriados”, diz o ministro Gajardo.

– Controle absoluto e abusos –

Em 1961, um grupo de cristãos protestantes alemães adquiriu uma grande área cercada por montanhas e florestas para formar seu prórpio enclave.

Paul Schäfer, um pregador, liderou o assentamento que mudou para um regime de controle absoluto.

Somente o alemão era falado e poucos podiam entrar ou sair. Não estava permitida a vida familiar e as crianças começavam a trabalhar aos sete anos.

Dezenas de menores foram abusados sexualmente por Schäfer, que foi preso em 2005. Cinco anos depois, morreu na prisão, aos 88 anos.

Mais vinte líderes do enclave foram condenados no Chile como autores, cúmplices ou ocultadores de abuso sexual e estupro.

A Alemanha reconheceu os colonos como vítimas. Dezenas retornaram para o país.

– “40 anos preso” –

“Vivemos 40 anos presos como em uma gaiola”, lembra Harald Lindemann, de 65 anos.

Foi com a prisão de Schäfer que as coisas começaram a mudar.

Os colonos puderam se casar, viver com seus filhos, mandá-los para a escola e receber seu primeiro salário.

Dentro do enclave, pessoas abusadas e abusadores coexistem, muitos deles com laços familiares.

No entanto, hoje em dia, todo colono se reconhece como vítima de Schäfer.

Mas agora eles enfrentam uma nova ameaça: a ordem de desapropriação, que esperam contestar na Justiça.

“Sente-se uma espécie de vingança contra nós (…) que somos praticamente filhos daqueles que cometeram esses erros e também crimes”, reflete Blanck.

“Por que eles (o governo) fazem vista grossa? Vivemos aqui há 63 anos em condições brutais”, lamenta Horst Schaffrick, de 66 anos.

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