Leite encarcerado: os impactos na saúde de crianças que nascem dentro de presídios, filhos de apenadas


Bebês ficam em cela especial com as mães até os seis meses de vida para garantir o aleitamento materno. Bebês passam seis primeiros de vida com suas mães em cela especial no Júlia Maranhão para garantir amamentação materna.
Rafaela Gambarra
“Mamãe, quer dizer que esse policial também é médico?”, perguntou Anderson, de 6 anos, à sua mãe, no dia em que foi visitá-la, na Penitenciária de Reeducação Feminina Maria Júlia Maranhão, em João Pessoa. Atualmente, são 210 mulheres recolhidas à unidade prisional, muitas delas mães, sendo quatro grávidas ou lactantes, que ficam em uma cela especial com os bebês, um tipo de berçário.
A medida é feita para garantir a saúde física do bebê, tendo em vista a importância do aleitamento materno nos primeiros meses após o nascimento. Como foram as mães, no entanto, que cometeram atos que as levaram a cumprir a pena, os bebês não podem ser privados de sua liberdade e, por isso, aos seis meses eles saem do presídio, ficando sob responsabilidade de um cuidador, geralmente uma avó ou tia.
Na Júlia Maranhão, em João Pessoa, há um roteiro de adaptação familiar dos filhos das privadas de liberdade, para que o momento não seja tão traumático, nem para a mãe nem para o bebê. Por mais que sejam feitas tentativas para reduzir os danos, porém, a ausência da figura materna no crescimento da criança muitas vezes gera traumas inevitáveis à situação. Sejam os filhos recém nascidos ou, mesmo, os mais crescidos.
A mãe de Anderson, Virgínia Marques, de 24 anos, foi presa recentemente, quando estava grávida de um bebê que nasceu de forma prematura, dias após sua prisão. Vitória tem também uma outra filha, de um ano e sete meses, que assim como o seu filho mais velho, está sob os cuidados da avó.
De acordo com o roteiro preconizado pela Júlia Maranhão, a partir do segundo mês após o nascimento do bebê é concedido ao cuidador que ficará responsável pela criança o direito da visitação assistida. Na visita, que dura 30 minutos, a mãe, o bebê e o cuidador são conduzidos ao setor psicossocial e permanecem sob assistência da assistente social ou da psicóloga da unidade.
Cela especial para mães e grávidas no Júlia Maranhão oferece estrutura lúdica para bebês em seus primeiros momentos de vida.
Rafaela Gambarra
De acordo com a psicóloga clínica da penitenciária, Sophia Idalina, o roteiro é feito como uma tentativa de redução de danos. “É uma forma da criança conhecer o novo lar, a pessoa que vai cuidar dela e estabelecer, de alguma maneira, uma relação com essa pessoa, antes de se desvincular da figura materna”, diz.
Segundo ela, também é feito um trabalho de conscientização com as mães. “É preciso que elas entendam que eles [os bebês] não fizeram nada para permanecer aqui, para ficar preso, privado do restante da família e do que o mundo oferece, como o contato com as outras crianças”, explica a psicóloga.
Bebês filhos de presas passam por roteiro de adaptação familiar para construir vínculo com cuidadores que ficarão responsáveis por ele enquanto mãe continua na prisão.
Rafaela Gambarra
O roteiro prevê também que a introdução alimentar seja iniciada um mês antes da data prevista para a saída do bebê. Assim, ele começa a ter acesso a outros alimentos que não só o leite materno, para que a ruptura seja o menos traumática possível para a criança.

Trauma e febre emocional
Atualmente, na Penintenciária Júlia Maranhão, são 210 mulheres recolhidas à unidade prisional, sendo quatro grávidas ou lactantes.
Rafaela Gambarra
O filho mais velho de Vitória, Anderson, que perguntou à mãe quando foi visitá-la se o policial era médico, ainda não se acostumou à nova realidade. Em vários momentos se mostra confuso em relação a tudo que aconteceu. Ele estava presente no momento em que Vitória foi presa, dentro do carro, quando passava por uma unidade da PRF.
Até hoje quando eu lembro da cena, me dá vontade de chorar. Ele fazia: ‘ô mãe, o que é isso?’
“Até hoje quando eu lembro da cena, me dá vontade de chorar. Ele fazia: ‘ô mãe, o que é isso?”, relembra Vitória. “Quando ele veio me visitar, perguntou porque eu tava aqui. Eu disse que tava no médico, esperando o neném crescer mais um pouquinho. Quando ele viu o policial, eu disse a ele que o policial era, sim, médico. Aí ele fez: ‘eu posso ir no seu quarto?’ E eu disse a ele que para que ele entrasse, tinha que levar injeção. Foi assim que convenci ele de não ir”, conta.
Sua filha do meio, por outro lado, que também estava presente no momento da prisão, mas estava dormindo, na cadeirinha, não tendo assistido ao ocorrido, apresentou marcas mais palpáveis do trauma: durante algumas semanas, teve febre emocional. Sua avó a levou ao médico algumas vezes, fez vários exames, mas nada explicava os sintomas.
“Quando minha mãe relatou o que houve, o pediatra disse, na hora, que era febre emocional. Essa semana ainda ela teve novamente”, relata Vitória.
Para ela, o sentimento por não poder estar ao lado dos seus filhos é de angústia e tristeza. Sua esperança, porém, é que como se trata de réu primária, confessa e que colaborou para a elucidação do crime, consiga a prisão domiciliar, inclusive para dar continuidade à amamentação do recém-nascido, que hoje está com pouco mais de um mês.
A importância da amamentação

Leite materno contribui para desenvolvimento físico e emocional do bebê.
Reprodução/TV Anhanguera
A nutricionista Jéssica Spinellis, especialista em nutrição materno infantil, destaca que o leite materno é o alimento mais completo e que tem a capacidade de atender todas às demandas nutricionais do bebê nos primeiros seis meses, sem a necessidade de oferta de água ou de outros tipos de leite.
Segundo ela, o leite materno possui anticorpos que protegem o bebê e aumentam sua imuindade, prevenindo doenças, infecções e alergias. “Ele também atua na prevenção da obesidade infantil, de doenças crônicas como diabetes e auxilia no desenvolvimento cognitivo dos bebês.
Além de toda essa questão fisiológica, o leite ainda atua fortalecendo o vínculo emocional entre mãe e filho, trazendo importantes contribuições para o desenvolvimento emocional da criança.
“Principalmente nos três primeiros meses de vida, em que o bebê vive o que a gente chama de uma extragestação, que é uma continuidade da gestação só que fora da barriga. Nesses três primeiros meses, o bebê ainda está entendendo que nasceu, e o leite materna atua promovendo uma sensação de segurança a ele”, explica.

A situação emocional da mãe, porém, também pode interferir na produção de leite materno, fazendo com que seja necessário interromper a amamentação. Foi o que aconteceu iniciamente com Vitória. “No início, foi bem difícil pra descer o leite. Acho que por conta de todo estresse que tinha acontecido. Como ele nasceu prematuro, foi pra UTI e ficou sendo amamentado pelo banco de leite. Uns quatro dias depois que ele nasceu, quando eu tava mais calma, que consegui drenar o leite”, conta.
Caso não saia da prisão antes do bebê completar seis meses, ele ficará com sua mãe, avó das crianças, que hoje cuida dos outros dois filhos de Vitória.
O que diz a lei
O juiz da infância e juventude na Paraíba, Adhailton Lacet, destaca que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) estabelece que o poder Público, as instituições e os empregadores propiciarão condições adequadas ao aleitamento materno, inclusive aos filhos de mães submetidas à medida privativa de liberdade.
As penas restritivas de liberdade não podem exacerbar seus limites e prejudicar outras pessoas que não elas mesmas, como, por exemplo, seus filhos
“Na mesma linha, a lei de execução penal determina que os estabelecimentos penais destinados a mulheres serão dotados de berçário, onde as condenadas possam amamentar seus filhos, prevendo ainda que a penitenciária de mulheres poderá ser dotada de seção para gestante e parturiente e de creche com a finalidade de assistir ao menor desamparado cuja responsável esteja presa”, esclarece.
O juiz defende que os presídios devem dispor de condições materiais para que possa ser garantido o direito das mães de amamentar seus filhos. “Suas penas restritivas de liberdade não podem exacerbar seus limites e prejudicar outras pessoas que não elas mesmas, como, por exemplo, seus filhos”, pontua.
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