Entenda as “coincidências” em torno da data da morte do papa Francisco

Na manhã da segunda-feira (21), o mundo se comoveu com a morte do papa Francisco, que faleceu após um AVC e uma falência cardíaca irreversível, segundo o médico do Vaticano, Andrea Arcangeli.

A data de sua morte também sucedeu uma das celebrações mais importantes do calendário religioso, que marcou uma combinação particularmente rara, coincidindo não só com a Páscoa Católica, mas também com a Ortodoxa e a Judaica.

Dentre toda a repercussão midiática, diversas teorias foram levantadas, além de outras que começaram a surgir, como o caso das “coincidências” em torno da data significativa em que ele morreu.

Pedro Gil, assessor do Patriarcado de Lisboa, explicou em uma entrevista à CNN Portugal os diferentes significados que se pode tirar da morte em um dia em que, segundo os fiéis, houve um “sinal de Deus”; confira abaixo:

CNN: O papa fez a sua última aparição num domingo de Páscoa, que é o dia mais importante do calendário litúrgico. Como esta coincidência é interpretada?

Pedro Gil: É uma coincidência que não foi imaginada por um homem. Podemos chamar de destino, mas os católicos gostam de pensar que Deus tem alguma coisa a ver com o assunto. E é importante porque no domingo de Páscoa, eles celebram a ressurreição de Jesus, que era Deus feito homem, e que nasceu e viveu na Terra durante algum tempo, para dizer aos homens que as doenças do mundo, aquilo que os cristãos chamam de pecado, têm cura.

E ele próprio carregou todas essas deficiências na sua vida e sofreu por isso, como quem se cura através disso. Mas a morte não foi o último gesto dele. Ele ressuscitou para dizer “eu venci a morte”, ou seja, “todo o mal que estava na minha morte ficou dissipado e aquilo que aconteceu comigo vai acontecer convosco”. Portanto, os cristãos estão convencidos de que todos os homens vão voltar a ter corpo, o que não é a mesma coisa que a reencarnação, que é voltar a uma vida que depois volta a morrer e volta a regressar.

Aqui é uma reencarnação definitiva, com uma mudança de estado de vida, para uma vida definitiva. Portanto, como no domingo de Páscoa se recorda o dia da ressurreição, é o dia mais importante do ano para um católico. Ora, que o papa tenha morrido após um domingo de Páscoa, mas num domingo de Páscoa de um ano muito especial, chamado Ano Jubilar, que só acontece em 25 anos, é uma coincidência que para um católico tem um significado absolutamente incrível.

CNN: Qual é o significado de tudo isso? (da data da morte)

Pedro Gil: O significado nós não sabemos, mas há uma coincidência que nos consola. Quais são os sinais, não sei lhe dizer, o que podemos dizer é que ficamos felizes com essa coincidência.

CNN: Mas a interpretação dessa coincidência faz alguma referência ao pontificado do papa Francisco?

Pedro Gil: O que eu diria é apontar para aquilo que o papa transmitiu, que é, certamente: migrantes, pobreza e todas essas coisas, mas apontar que a solução dos problemas é Deus, porque Deus é bom.

Já ouvi a interpretação de que Deus permitiu que ele festejasse plenamente as cerimônias dos últimos dias, desde a quinta-feira Santa até o domingo de Páscoa. Deus deixou-o completar o festejo principal do ano, num ano que era super especial.

CNN: Qual é a visão dos católicos sobre isso, relacionada a ideia de que Deus quis que os últimos dias do papa fossem num dia tão importante para os católicos?

Pedro Gil: Há interpretações para tudo. Creio que quem interpreta as escrituras ficou feliz, e dirá “que bom que tenha permitido que ele tenha tido a grande alegria de viver este dia” que, para um cristão, é um dia muito alegre mesmo. E depois, de alguma forma, também despedir-se porque ele fez aquela volta à Praça de São Pedro. É uma espécie de grande delicadeza do Céu.

CNN: Como podemos olhar para esse momento?

Pedro Gil: Eu acho que podemos ver uma despedida do povo todo, do mundo todo, que também lhe foi permitido. O que ele estava processando em seu coração? Eu estou muito curioso para saber mais sobre isso. Não sabemos, não é? Quando uma pessoa é eleita papa, para mim, ela está sempre assistida por Deus. E esta coincidência é um sinal de que Deus esteve com ele até ao fim.

CNN: E com os seus antecessores? Aconteceu alguma experiência parecida?

Pedro Gil: O papa João Paulo II morreu no sábado anterior ao domingo de Páscoa. Ele morreu na véspera de um domingo que ele próprio, João Paulo II, criou, chamado Domingo da Divina Misericórdia. O que significa, basicamente, é da enorme bondade de Deus. E, para ele, morrer tão próximo desse domingo que ele próprio criou é algo interessantíssimo.

CNN: Mas, como católico, que interpretação você faz de todas essas coincidências em torno da morte de Francisco?

Pedro Gil: Sinto que Deus esteve presente. Ele não morreu por distração, por acaso ou por doença. É como se ele estivesse ao colo de Deus até ao último momento. Eu acho que qualquer católico achará que a escolha deste dia é uma escolha de Deus. Foi uma espécie de sinal indireto de dizer que estava mesmo perto dele.

CNN: Você consegue identificar mais alguma coincidência em torno da morte do papa Francisco?

Pedro Gil: Há, de fato, um detalhe curioso. O papa Francisco morreu logo a seguir a um acontecimento particularmente raro. Este ano, a Páscoa dos Católicos, a Páscoa dos Ortodoxos e a Páscoa judaica coincidiram, embora todos tenham calendários diferentes. É muito raro de acontecer. Esta, sim, é uma coincidência muito poderosa. É preciso de muitos anos para que isso aconteça.

CNN: O último encontro oficial do papa Francisco foi com o vice-presidente dos Estados Unidos da América, JD Vance, com quem o pontífice teve um desacordo público em relação às políticas migratórias. Existe alguma coincidência nesse encontro?

Pedro Gil: Verifico, de fato, que há uma coincidência. Mas não sei tirar algum significado religioso ou teológico. Gostaria muito que, já que o JD Vance se afirma católico, que ele fosse permeável à boa influência do papa Francisco. Acredito que tenha conversado algumas coisas fora dos microfones. Acredito que o papa tenha, embora com limitações, mas com a ajuda de quem o rodeia e o sabe interpretar, tentado dizer coisas muito relevantes.

CNN: Você acredita que ele tentou passar a sua mensagem a JD Vance?

Pedro Gil: O papa Francisco escreveu uma carta aos bispos católicos americanos, em concreto, para clarificar uma interpretação que JD Vance fez acerca do pensamento católico. O papa Francisco interveio e disse que não, que o pensamento católico não é bem assim. Foi um diálogo em aberto, feito na praça pública entre os dois, de duas interpretações diferentes à luz da fé católica.

CNN: Mas o fato de o papa estar consciente de que estava mal e provavelmente sentir que os seus dias estavam perto do fim pode ter algum peso na recepção ao vice-presidente americano?

Pedro Gil: Eu imagino que para JD Vance deve ter tido mais peso morrer o papa do que não morrer o papa, porque é mais ou menos uma espécie de disposição de última vontade. Mas acredito que este encontro seja mais importante para as pessoas que acompanham a geopolítica. Para a maior parte dos católicos que seguem o papa, a geopolítica é um mistério mais denso que os mistérios da fé.

CNN: É raro que um papa envie uma carta aos bispos de um país evidenciando a política do local. Isso não dá um outro significado a este encontro?

Pedro Gil: Não é muito frequente que o papa envia uma carta desta aos bispos. Ele não identificou especificamente JD Vance, mas todos perceberam que era ao vice-presidente que papa Francisco se referia. Muitos bispos americanos acreditam que o capitalismo, mesmo com excessos, pode ser considerado uma solução para reconhecer a dignidade das pessoas e o seu espírito de empreendedorismo.

Outros dizem que o capitalismo gera imensos desequilíbrios e favorece os ricos e a criação de grandes fortunas que, na visão da igreja, são um grupo de risco enorme. Jesus disse que é mais fácil entrar um camelo pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar nesse tal de Reino dos Céus. Sabe-se que o papa tinha uma grande aversão ao capitalismo. E ele escreveu para os bispos americanos tendo em conta que uma parte do episcopado dos EUA tinha uma aversão muito forte com o papa Francisco.

CNN: Mas qual era a divergência de pensamentos entre o papa e o vice-presidente americano?

Pedro Gil: A principal causa era com relação à imigração. JD Vance é contra a imigração, e se baseou em um texto de São Tomás de Aquino, que é um autor do século XIII, que disse que devíamos amar toda a gente, mas que existe uma hierarquia. Eu tenho mais dever de amar a minha mãe, o meu pai, a minha mulher e os meus filhos, do que tenho de amar o meu vizinho. Isso se chama em latim “ordo amoris”, que é a ordem do amor.

JD Vance utilizou este pensamento católico para dizer que os imigrantes são pessoas que devemos amar, no entanto, não estão nas nossas prioridades, e que têm de cuidar da “America primeiro”. Foi a interpretação que ele fez dos princípios católicos para justificar uma visão política. Em resposta, o papa alertou que existe outra forma de olhar para esse documento e que os imigrantes têm valor.

CNN: Esse vai ser um tema que será discutido pelo sucessor do papa Francisco?

Pedro Gil: O próximo papa, entre as mil missões que ele terá, tem que pacificar a relação entre dois grupos de bispos. O dos Estados Unidos, que, de forma muito simplificada, estão à direita. E a dos bispos alemães, à esquerda, que se tornaram bastante progressivos e olham para a defesa dessas posições como a única solução para travar a perda acentuada de fiéis no país.

Este conteúdo foi originalmente publicado em Entenda as “coincidências” em torno da data da morte do papa Francisco no site CNN Brasil.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.