[Coluna] Cinema brasileiro é nosso novo futebol

"KleberEm 2025, o cinema é o orgulho do Brasil. Comemoramos a vitória em Cannes de Wagner Moura e Kleber Mendonça Filho com “O Agente Secreto” como se fosse nossa (e não é?).Até pouco tempo atrás, o cinema nacional era tratado no Brasil pelo governo de extrema direita de Jair Bolsonaro e seus seguidores como uma espécie de “antro de drogados”, formado por “mamadores da Lei Rouanet” e “comunistas”, entre outros termos e mitos falsos usados pelos inimigos da arte. Diretores e atores, principalmente aqueles que claramente sempre se posicionaram à esquerda (caso do diretor Kleber Mendonça Filho e do ator Wagner Moura) eram tratados praticamente como marginais.

Dois anos e meio depois do fim do governo Bolsonaro, as coisas mudaram. Depois de ser marginalizado, o cinema nacional vive um dos seus melhores momentos e sua “era de ouro” do sucesso internacional. Pela primeira vez, filmes brasileiros diferentes receberam prêmios importantes em Cannes e no Oscar na mesma temporada. Falo, claro, do sucesso do filme “O Agente Secreto”, do diretor Kleber Mendonça Filho, em Cannes, e de “Ainda Estou Aqui” no Oscar.

“O Agente Secreto” foi consagrado em Cannes, onde Kleber foi premiado como melhor diretor e Wagner Moura, como melhor ator. A última vez em que o país ganhou o troféu de melhor diretor foi em 1969, com o filme “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro”, de Glauber Rocha. Wagner é o primeiro brasileiro a ganhar o prêmio de melhor ator. O filme levou também o importante Prêmio da Crítica de Cannes e também o “Prix de Cinémas d’Art et Essai”. Ou seja, “O Agente Secreto” fez história.

Esse sucesso aconteceu apenas alguns meses depois do fenômeno do filme “Ainda estou aqui”, de Walter Salles, que levou o prêmio de Melhor Filme Internacional no Oscar e de Fernanda Torres ganhar o Globo de Ouro de melhor atriz, além de ser indicada ao Oscar e virar “rainha” do Brasil.

Ou seja, em 2025, o cinema é o novo futebol. É o lugar onde sentimos um orgulho quase patriota. Comemoramos as vitórias de Wagner e de Kleber com “Agente Secreto” como se fosse nossa (e não é?).Todas as vezes que passo por um cartaz de “Ainda Estou Aqui” na Alemanha, quero fazer uma foto. E vai acontecer o mesmo com “O Agente Secreto”. E, olha, é bom se orgulhar do seu país por causa da arte, principalmente depois de vivermos um tempo de trevas, onde era quase impossível se orgulhar do nosso país.

Memórias da ditadura

O Brasil, além de ter vivido uma época de apagão da arte e desvalorização dos artistas, também andou negando a ditadura, ou pior, até se orgulhando desse tempo sombrio e horroroso. Não por coincidência, acho, os dois filmes que mais fizeram sucesso em 2025 se passam nesse período. “O Agente Secreto” não tem a ditadura e seus crimes como tema principal, como é o caso de “Ainda Estou Aqui”, mas a história se desenrola em 1977, no governo de Ernesto Geisel, em Recife. A ditadura está ali o tempo todo. Logo no início do filme, uma legenda explica: “Esse filme se passa em 1977, uma época cheia de pirraça”. Essa é uma maneira quase ‘fofa’ de definir o período, quando a ditadura se encaminhava para o fim mas ainda existia censura, prisões e tortura.

Em entrevista ao jornal O Globo, Kleber Mendonça Filho disse que essa era a época da sua infância e que ele mesmo se lembra de cantar o hino na escola. Eu também me lembro desse patriotismo obrigatório. Muitos não sabem, mas nós, da Geração X, éramos obrigados a cantar o hino diariamente e jurar amor à bandeira.

É muito simbólico que os filmes que nos fazem sentir tanto orgulho do Brasil em 2025 sejam os que criticam e lembram esse período horrível da nossa história, o mesmo que muitos tentaram “reviver” recentemente. Estivemos perto de um golpe de estado em janeiro de 2023 e os planos eram acabar com a democracia e perseguir adversários políticos. É um alívio e tanto ver que, além desse revival da ditadura não ter dado certo, a gente ainda tem o cinema para nos lembrar o quanto esse período foi terrível. É preciso lembrar para que o horror não se repita.

_____________________________

Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo “02 Neurônio”. Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.